Obras para transformar um apartamento em alojamento local irritam a vizinhança

REPORTAGEM
Samuel Alemão

Texto

URBANISMO

Misericórdia

3 Maio, 2017


Os trabalhos de remodelação de um velho apartamento na zona do Príncipe Real estão a causar dores de cabeça aos moradores. Queixam-se do barulho, do pó e da alegada incompetência do empreiteiro, que por três vezes já lhes entrou casa adentro. Dizem ainda que tudo acontece sem licenciamento. Mas também temem que isto seja apenas o início de um calvário de incómodos trazidos pela transformação de mais um apartamento da capital em poiso para turistas. A Polícia Municipal, chamada por diversas vezes, propôs o embargo das obras. Mas os serviços camarários, inundados com processos semelhantes de transformação de andares em alojamentos turísticos, tardam em dar uma resposta. O responsável pela obra nega ilegalidades, mas reconhece algum “azar”. E diz estar a ser vítima de um “complô”.

Mariana Silva, 19 anos, quase morreu de susto, quando, no dia 31 de março, ouviu um estrondo por cima da cabeça. Teve então um vislumbre de uma cena surrealista. Semi-despida, por se preparar para tomar banho, reparou que o caixilho da lâmpada por cima da cabine de duche havia caído e pendia do tecto, em equilíbrio precário. Na chão da mesma espalhava-se agora caliça vinda de lá. “Nem queria acreditar no que estava a acontecer”, diz, denotando dificuldade em esconder um sorriso ao evocar a insólita cena, ainda para mais por esta ocorrer três dias após um episódio ainda mais espectacular. Nesse outro momento, o barulho forte que tem pautado o quotidiano do prédio situado na Rua da Mãe d’Água, perto do Príncipe Real, antecedeu o estrépito anunciando a abertura de uma cratera no tecto da cozinha. “Cá de baixo, víamos o andar de cima”, recorda. A irmã acena com a cabeça e ri.

A mãe, Ana Sá, 46 anos, tenta manter também o bom humor. Não esconde, todavia, a profunda irritação que tudo isto lhe está a causar. Até porque, no ano passado, gastou perto de 20 mil euros em obras de remodelação da casa, sobretudo na zona da cozinha. Os responsáveis pelas obras no andar de cima, começadas no início de Março, assumiram de imediato responsabilidades e “disseram que queriam pagar logo tudo”, mas Ana recusou e preferiu esperar pelo fim do calvário que tem vivido. “Quando acabarem, depois logo se vê. Neste momento, com o que se está a passar e o que se adivinha, questiono-me com frequência se vou continuar a viver nesta casa”, desabafa. E “o que se adivinha” , findas as obras, é a certeza de o apartamento em obras no rés-do-chão do número 49 da Rua Mãe d’Água acolherá um alojamento local. Ana e os vizinhos temem que os dias de sossego tenham terminado de vez. Ao ruído da construção civil seguir-se-á o da entrada e saída de turistas.

Também Manuel Bastos, 82 anos, vizinho do rés-do-chão direito, se queixa do barulho das obras como uma constante, ao ponto de não conseguir repousar. “Isto tem sido uma grande dor de cabeça”, diz, antes de recordar as circunstâncias em que se deu conta de que os trabalhos de transformação do andar ao lado lhe tinham entrado casa adentro. Um destes dias, depois de ter regressado de uma viagem à sua terra, na Beira Alta, ouviu a mulher a dizer que, se calhar, tinham ratos em casa. Porquê?, indagou Manuel. Havia uma massa cinzenta em cima da garrafeira situada na despensa. Acesa a luz, e retiradas as garrafas, percebeu-se que afinal era cimento utilizado para fazer um remendo a um buraco aberto na parede. Também neste caso, os donos da obra se ofereceram logo para arranjar os estragos. “E pediram para não dizer nada ao administrador”, recorda Manuel, antes de desabafar: “Não se pode mais com este barulho, estou farto!”

Obras para transformar um apartamento em alojamento local irritam a vizinhança

Buraco aberto no tecto da cozinha de Ana Sá, quando faziam obras no piso de cima (DR)

Todos estes queixumes levam o administrador do condomínio e morador no terceiro andar, Fernando Faria, a dizer que “já foram ultrapassadas todas as marcas”. Farto do barulho, do pó e de ouvir os lamentos dos vizinhos, critica o que vê como uma atitude de desconsideração e arrogância por parte dos responsáveis pela empresa encarregada da obra, a Sismo Engenharia e Construções Lda. – firma que é ainda acusada de descaracterização do prédio, ao retirar elementos estruturais e ao colocar perfis metálicos onde antes existiam paredes em tabique. “Já falámos com eles várias vezes, mas continua tudo exactamente na mesma. É como se não se tivesse passado nada”, diz o representante dos condóminos, antes de fazer notar que os trabalhos em curso desde há cerca de dois meses “não têm licenciamento”. “Perguntei-lhes pelo projecto da obra e não foram capazes de me o apresentar. Ou seja, as obras não estão legais”, diz. A Polícia Municipal (PML) foi, por isso, chamada ao local. O que aconteceu por diversas vezes, durante o final de março.

Dessas deslocações resultaram pelo menos duas propostas de embargo, feitas aos serviços de urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa. A última das quais foi enviada à autarquia pelo comandante da esquadra de fiscalização da PML, a 5 de abril. “Aquando da fiscalização, foi verificado que decorrem obras de remodelação da fracção habitacional, com alterações interiores estruturais, sujeitas a comunicação prévia, a qual não foi entregue na Câmara Municipal de Lisboa”, refere a informação sobre o processo, a que O Corvo teve acesso e na qual se elencam as mudanças em curso. Entre elas: demolição de uma parede de “tábuas em costaneiro” na cozinha; levantamento na mesma divisão de uma parede em alvenaria de tijolo; demolição de parede divisória no quarto, com a aplicação de vigas em perfil metálico no tecto; retirada das “alvenarias da parede Cruz de Santo André” ou ainda a remoção de soalhos em várias divisões. No mesmo documento, é referido que o responsável da obra teve conhecimento da situação e se prontificou a reparar os danos e a “tomar as medidas necessárias”.

Obras para transformar um apartamento em alojamento local irritam a vizinhança

A parede da despensa de Manuel Bastos ficou neste estado após um “azar” na obra ao lado (DR)

Algo reconhecido a O Corvo pelo gerente da empresa Sismo Engenharia e Construções, Luís Blanco, que diz não perceber a razão de tanta contestação por parte dos moradores e do administrador do prédio, quando, esclarece, “sempre existiu uma atitude de boa vizinhança”. “Não há obras que não causem ruídos, que não causem incómodos, como se sabe. Mas, neste caso, chamaram a polícia municipal quatro vezes seguidas. Algo que não faz sentido. Não queremos prejudicar ninguém, mas também não queremos ser prejudicados”, afirma o responsável, garantindo que não está a fazer nada de ilegal. Tal preocupação levou a que, explica, o projecto relativo à intervenção em curso tenha sido entregue aos serviços camarários, “apesar de este tipo de obras não exigir licenciamento”. Mas, então, por que o fez e já com os trabalhos em curso? “Fi-lo para não ferir susceptibilidades”, assegura, já depois de criticar o que vê como “animosidade” do condomínio.

Ainda assim, Luís Blanco reconhece o “azar” tido com os incidentes reportados – “quando estávamos a levantar o pavimento para pôr lã de rocha, eu mesmo escorreguei e pus o pé em cima do tecto falso” da cozinha da moradora Ana Sá, admite. Mas salienta que, na remodelação total de uma casa com estas características e antiguidade, “as obras acabam por ser um pouco interactivas”. “Tirámos um revestimento e percebemos que temos que substituir várias vigas, que estavam completamente podres”, explica, dando conta dos imponderáveis associados a uma intervenção do género. “Sabemos o que estamos a fazer, somos uma empresa de engenheiros com 30 anos de actividade. Não somos uns patos bravos”, afirma o responsável, salientando que “ainda não está decidido se o apartamento será um alojamento local ou não”. Algo que, diz, apenas será decidido quando estiverem concluídos os trabalhos que tanta irritação estão a causar aos envolvidos.

Dilema que parece contradizer a informação inicial avançada aos moradores pela própria empresa. “Na reunião da condomínio realizada antes das obras, demos conta do que iríamos fazer e, de facto, explicámos que o andar poderia vir a ser destinado a um alojamento local. Na altura, disseram-nos que já tinham um no prédio e não queriam mais”, rememora Luís Blanco, antes de especular: “Não sei se a tal animosidade que sentimos tem que ver com isso, com o facto de podermos vir a fazer essa opção”. Para o empresário e engenheiro, neste momento, parece-lhe evidente a existência de um “complô entre os moradores e o administrador”. “Quem é que ganha com isto, se as obras pararem? Ninguém, parece-me. Na verdade, se isso acontecer, os vizinhos é que serão os maiores prejudicados, pois terão de esperar mais quatro ou cinco meses até as obras estarem concluídas. Julgo que há aqui uma clara vontade de estragar a vida aos outros”, desabafa.

Obras para transformar um apartamento em alojamento local irritam a vizinhança

“Mãe, há um buraco no tecto da cozinha!” (DR)

O Corvo questionou a Câmara Municipal de Lisboa sobre este processo. No dia 20 de abril, enviou por escrito as seguintes perguntas: “A CML vai embargar a obra em causa? Confirma a CML a subida do número de embargos e propostas de embargos de obras em apartamentos? Quais os números de 2016 e deste ano?  Como comparam com os números dos anos anteriores?

A Polícia Municipal tem, neste momento, capacidade operacional para responder a todas as solicitações deste género?”. Até à publicação deste artigo, porém, não obteve respostas. O Corvo sabe, porém, que os serviços de urbanismo e a Polícia Municipal se encontram inundados de queixas de residentes relativas a casos semelhantes, em que os novos proprietários de andares procedem a trabalhos de remodelação, muitos deles com o intuito de os colocar o mais rápido possível no mercado de arrendamento turístico.

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