Pressão turística e especulação imobiliária continuam a despejar centenas de lisboetas

REPORTAGEM
Sofia Cristino

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O Corvo

Fotografias

URBANISMO

VIDA NA CIDADE

Santa Maria Maior

17 Novembro, 2017

Os bairros históricos de Lisboa têm vindo a mudar, perdendo cada vez mais pessoas. Nos últimos quatro anos, contudo, a transformação assumiu proporções fora do comum. À reforma da Lei do Arrendamento Urbano cunhada, em 2012, pela então ministra do Ordenamento do Território, Assunção Cristas, veio juntar-se o actual boom turístico. Os senhorios estão a aproveitar o momento para vender os imóveis a preços mais elevados e os novos proprietários para construírem alojamento local (AL). Num curto espaço de tempo, centenas de pessoas já receberam ordens de despejo. Enquanto procuram alternativas, são vítimas de pressão pelos senhorios para saírem mais cedo. A rapidez do fenómeno preocupa associações de defesa à habitação. Mas também a presidente da Assembleia Municipal de Lisboa (AML), Helena Roseta, que está empenhada em alterações legislativas. O Corvo foi até a Alfama e à Mouraria ouvir quem se sente ameaçada de expulsão. Mas o fenómeno é recorrente noutros bairros da capital.

A Mouraria, um dos bairros mais antigos da cidade de Lisboa, está irreconhecível. A poucos metros da Praça do Martim Moniz, quem sobe pela Rua dos Cavaleiros até ao Largo do Terreirinho, vai esbarrando com turistas que entram carregando malas para prédios antigos, uns anunciando-se como alojamento local (AL) e outros sem identificação. Muitos imóveis estão em obras. Para os moradores, é evidente que muitos senhorios estão a alugar temporariamente os quartos a turistas e que o destino das empreitadas só pode ser um: alojamento local.

O número 7 do Largo do Terreirinho ainda é uma das poucas excepções, para já. Brevemente, terá o mesmo destino que os vizinhos. No segundo andar, mora um casal com dois filhos, de 1 e 15 anos. Paulo Saraiva, com 43 anos, nasceu no quarto da mãe, na Rua da Amendoeira, uns metros abaixo. Mudou-se para o Largo do Terreirinho em 2004. A companheira, Patrícia Santos, com 42 anos, mudou-se em 2007. Paulo Saraiva diz que nunca assistiu a nada assim. “A Mouraria já não existe. Não há um único prédio que não seja um hostel ou tenha um quarto alugado. Há três anos, já se notava mas não se esperava que tivesse um impacto tão grande. Isto tem sido um descalabro total”, diz, indignado.

O edifício onde residem foi comprado em Maio deste ano, para surpresa dos inquilinos. “Vimos que o prédio já estava à venda, há quase dois anos, numa imobiliária na internet. Podiam-nos ter informado”, desabafa Patrícia Santos, referindo-se aos anteriores senhorios. “Eles tinham o prédio à venda por um valor muito elevado. Quando encontraram um comprador, informaram-nos que tínhamos a opção de compra. Fizeram-nos uma proposta, mas claro que não podíamos aceitá-la”, explica Paulo Saraiva.

Recentemente, começaram a desconfiar que o imóvel pudesse estar novamente à venda, porque vêem pessoas diferentes a visitarem-no, todos os dias. “Punham a chave sem querer na nossa porta. Uma vez, abri e disse que devia ser engano e eles nem pediram desculpa”, conta Patrícia Santos. Entretanto, o senhorio confirmou-nos que quer construir um hostel.

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O contrato de arrendamento do casal cessa em Agosto de 2019. Ainda não receberam a ordem de despejo, mas o novo senhorio, Roberto Ferreira, dono da imobiliária Robertfix, já fez uma proposta para os inquilinos saírem. “O novo senhorio não me disse directamente para sair, mas fez-me uma proposta fora do normal. Queria dar-me uma indemnização, que consistia em devolver-me o valor das rendas até 2019. Se fosse embora amanhã, dar-me-ia nove mil euros, mas, se eu demorasse seis meses, já seria menos. Quis mandar-me areia para os olhos”, acusa.

Patrícia Santos comentou com Roberto Ferreira que, se não encontrarem alternativa mais cedo, ficam naquela casa até 2019. O senhorio, todavia, terá lembrado que o pode impedir. “Ele disse-me que podia ficar até 2019, mas que, se for à Câmara de Lisboa dizer que o prédio precisa urgentemente de obras, temos de sair. Querem é livrar-se das pessoas o mais rápido possível, independentemente de termos filhos ou de como ficamos psicologicamente”, lamenta.

Desde que percebeu que teria de sair, com uma filha recém-nascida, Patrícia Santos entrou em depressão. “Quando soube que o prédio estava outra vez à venda, a minha cabeça começou a andar à roda. Até sonhava que andava à procura de casa. O meu filho não quer deixar os colegas e a minha filha está em fase de adaptação à creche, não se começa do zero do dia para a noite”, afirma. “Se fôssemos só nós, ainda tentávamos arranjar um sítio para nos enfiar. Com filhos, é um bocado difícil, porque sair daqui mexe com muita coisa. Se sairmos, vamos viver para o Cacém, onde temos família, mas teremos de pagar transportes, o que excede o nosso orçamento mensal”, admite Paulo Saraiva.

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Paulo Saraiva à janela da casa da qual teme ser despejado.

“E procurar casa em Lisboa, é uma hipótese?”, questiona O Corvo. “Arranjar casa em Lisboa é impossível. O metro quadrado na cidade está uma coisa fora do normal. Há T0 para alugar na Mouraria a mil euros por mês. Pagamos mil euros pela renda e comemos o quê? Isto é uma pandemia, porque não há cura para isto e ninguém quer curar isto”, lamenta o inquilino. “A doença da moda é fazer-se hostels e alugar quartos, muitos ilegais”, acrescenta.

Patrícia e Paulo pagam 400 euros de renda e recebem ambos o ordenado mínimo nacional. Trabalham a cinco minutos a pé de casa, no Hotel Mundial, ele na lavandaria e ela nas limpezas, e não ponderam sair. “A nossa garantia é o nosso trabalho e estamos efectivos. Não vamos mudar de emprego”, garantem.

Apesar de ainda terem tempo até ao final do contrato, sentem medo e solidão. “É preciso pôr um travão nisto. Ninguém apresenta soluções. A Câmara diz que vai disponibilizar casas, mas para quem?”, questiona Patrícia Santos. O companheiro, referindo-se ao caso da Rua dos Lagares, onde foi travada a saída de 16 famílias em risco de serem despejadas, por decisão da CML, lamentou não ter a quem se unir. “Na Rua dos Lagares, houve união, aqui vou-me unir a quem? Já praticamente não temos vizinhos”, diz, inconformado.

Os novos proprietários, que surgem, normalmente empresas imobiliárias, utilizam vários formas de pressão para os inquilinos saírem. Uma delas consiste em transformarem alguns andares dos imóveis em AL. “Com o barulho, os moradores que ainda lá estão, principalmente idosos, saturam-se e vão-se embora, para casa dos filhos, para lares ou para a rua. Há senhorios que oferecem indemnizações. As pessoas aceitam o dinheiro e, passado meia dúzia de meses, não sabem o que fazer à vida. Conheço uma inquilina a quem foi proposto 900 euros de indemnização, nem para as mudanças dava”, revela Paulo Saraiva.

Contactada telefonicamente e por email por O Corvo, a empresa Importantaltura, que detém, entre outras, a firma Robertfix, disse que falou com Roberto Ferreira, mas este não mostrou disponibilidade para responder às questões. Uma das perguntas endereçadas a Roberto Ferreira foi se, ao propor a indemnização aos inquilinos do Largo do Terreirinho, tinha a intenção de que os mesmos saíssem mais cedo.

Alfama:um bairro entregue às empresas imobiliárias

Em Alfama, 25% da habitação já está a ser usada para alojamento turístico, segundo dados de uma tese de mestrado em Turismo e Comunicação, que será defendida em Janeiro, no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT ), por uma moradora do bairro histórico, Ana Gago.

No número 27 do Beco da Lapa, estão a construir um hostel, mas a presença do morador no rés-do-chão parece ser indiferente para a imobiliária, que começa a trabalhar às 8h da manhã. “Pago 280 euros de renda e tenho de estar no meio da rua. Saio quando as obras começam. porque é impossível estar em casa com o barulho ensurdecedor. Têm máquinas todos os dias a trabalhar por cima de mim”, explica António Melo, reformado de 71 anos.

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António Melo quer continuar a viver em Alfama.

Devorador de literatura e de jornais, antes dedicava o seu tempo à leitura, mas também a outras artes. “Costumava ler, desenhava, pintava e tirava fotografias. Tenho mil e tal fotos”, conta entusiasmado, enquanto nos mostra algumas das suas obras de arte, como telas e vitrais. Confessa que, por estar a ser impedido de viver na própria casa, às vezes tem mesmo vontade de fazer as malas e ir viver para a rua.

O barulho, contudo, não é a única razão da consternação do morador. “Deram-me cabo da coluna da chaminé, é um perigo. O pó vem todo para baixo e, quando passo o dedo, é só mesmo pó com gordura”, exemplifica o inquilino, que sofre de asma. “Já aconteceu abrir a porta de casa e vir uma poeirada que nem dá para respirar, tenho de deixar a porta aberta e dar um passeio, até o pó sair. Eles trabalham com as portas fechadas e isto acumula muito pó”, lamenta, ainda.

Ana Gago é testemunha do que se passa com o vizinho António Melo. “Noutro dia, abrimos a porta e parecia que estávamos numa tempestade de areia. Fiquei chocada”. comenta. Mas, o pior que lhe aconteceu, reconhece o morador, foi mesmo uma inundação. “Abriram a torneira da escada e houve uma grande inundação. Parecia uma cascata. Qualquer dia, pode acontecer uma coisa mais grave”, prognostica.

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A empresa imobiliária Trilhos de Charme, que comprou o imóvel de António Melo em Novembro de 2015, garante, em depoimento escrito a O Corvo, que de todas as fiscalizações realizadas ao prédio por denúncia do inquilino, “nunca foi detectado nenhum procedimento irregular”. “O contrato de arrendamento do senhor António Melo terminou no dia 31 de Maio de 2017. No dia 25 de Janeiro de 2016, comunicámos a nossa decisão de não renovar o contrato. Como o locado não foi restituído no prazo devido, não nos restou outra alternativa senão avançar com a acção de despejo”, explica a gerência da imobiliária.

O inquilino, todavia, não saiu. Com o prédio todo em obras, sai do seu rés-do-chão apenas durante o dia porque não tem outra alternativa. Sente que o avanço das obras é uma forma de o pressionarem a abandonar a casa mais rápido. Mas António Melo não se importa. “O meu contrato estava em vigência até Maio e o ano passado já havia obras, sem sequer terem licença. Só pediram a licença em Setembro e, por isso, vou continuar até encontrar casa”, acusa António Melo, que foi operado ao coração há quatro anos. Segundo a lei antiga, lembra o inquilino, “tinham de arranjar um sítio durante pelo menos dois anos para eu ficar enquanto faziam as obras, pois tenho mais de 65 anos e sou portador de uma doença”. “A lei da Assunção Cristas já permite que façam tudo como querem”. acrescenta.

Quando adquiririu o imóvel, a Trilhos de Charme admite que a situação do prédio era “bastante crítica”. “Deparámo-nos com infestações de baratas e ratos e situações de derrocada iminente de alguns elementos estruturais. As obras que começamos o ano passado foram de limpeza para salvaguardar o edifício e os inquilinos”, explica a empresa, justificando, assim, o motivo de ter iniciado a empreitada mais cedo. Apesar da alteração na lei, e tendo conhecimento da situação de saúde de António Melo, a Trilhos de Charme garante, ainda, que apresentou várias propostas ao inquilino, mas que o mesmo mostrou sempre muita resistência em aceitá-las.

“Desde que iniciámos o processo de recuperação do edifício, nunca foi nossa intenção faltar ao respeito ou desvalorizar as preocupações dos moradores. Gostaríamos de continuar as obras e, simultaneamente, arranjar uma solução digna para o senhor António, mas ele tem uma posição muito extremada”, afirma a imobiliária. Questionada pelo O Corvo, a empresa não refere, contudo, quais foram as alternativas apresentadas.

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António nasceu em Santa Catarina e foi viver para o Beco da Lapa com cinco anos. Em 1972, saiu de Lisboa e andou pelo país a vender armas. Quando regressou ao bairro das memórias de infância e juventude, em 2007, tinha como certo gozar ali a sua reforma. Mas hoje, dois anos depois de ter recebido a ordem de despejo, António Melo já não sabe onde vai passar os próximos anos. Não tem família, mas foi ali que criou as suas relações de amizade. Ao mudar de zona de residência, receia perder os poucos amigos que ainda tem, assim como a sua médica de família.

Enquanto caminha com O Corvo pelas ruas de Alfama, vai mostrando as casas abandonadas e a quantidade de pessoas que já saíram. “Neste prédio, moravam seis, foram todos embora”, lamenta. A conversa só é interrompida pelo som das máquinas das obras ou pelas saudações dos vizinhos, que não perdem uma oportunidade para lhe perguntarem por novidades. “Tenho o apoio psicológico de muita malta. Quando saio daquela porta, já não me lembro da maior parte das coisas”, admite.

Já procurou casa, mas as rendas acima dos 400 euros são incomportáveis para o inquilino, que recebe cerca de 600 euros de reforma. Já concorreu duas vezes a concursos de habitação da CML, mas não conseguiu casa. “Fui à Câmara e disseram-me que estou sozinho e que ganho muito”, diz, incrédulo. Em Julho, reuniu-se com a presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, Helena Roseta, mas ainda não teve novidades do encontro. “Sei que ela mandou um oficio para o presidente da câmara mas, até agora, nada mudou. Qualquer dia, o Medina quer pessoas para votar nele e não há aqui ninguém”, ironiza.

O residente também tem contactado os advogados da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, mas não teve muita sorte. “Veio cá uma senhora da junta, que me disse para não me preocupar, porque, enquanto as ombreiras das portas não derem de si, não há problema. A única coisa que ainda fazem é trazerem-me o almoço todos os dias”, explica. E se não conseguir arranjar uma solução? “Vou para debaixo da ponte, já tive vontade”, afirma, salientando, ainda, que só em Alfama há 152 casas da autarquia vazias.

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A passar por uma situação difícil está também Carla da Cunha. Tem 38 anos e vive num T0 no Pátio do Carrasco, um pouco acima do Miradouro de Santa Luzia, com as duas filhas menores, de 9 e 15 anos, e o marido. Mas Carla prefere chamar-lhe um “TA” e explica porquê: “Isto é um T-Anexo, porque a casa-de-banho está na rua”. Tal como o companheiro, está desempregada. Vivem com cerca de 480 euros por mês, do rendimento social de inserção, e de alguns biscates, como trabalhos de jardinagem e artesanato. Pagam 220 euros de renda. Ali, no pátio onde já estiveram as antigas cavalariças do antigo Palácio do Conde Andeiro, já existiram dez moradores. Agora, são cinco.

Carla e Manuel, juntos há 17 anos, mudaram-se para o número 14 do largo histórico em 2012. Em Abril deste ano, o novo senhorio informou-os de que não lhes renovaria o contrato, alegando que precisava de realizar “obras profundas”. Não disse qual a finalidade da empreitada, mas Carla desconfia que seja para AL, pois vê estrangeiros a visitar o pátio todos os dias. A família tinha ordem para abandonar a casa até 30 de Setembro, mas ainda não saíram. Desde aí que procuram uma nova habitação, mas as rendas, explica, são “exorbitantes” e as casas que visita são “minúsculas” para um agregado familiar composto por quatro pessoas. Enquanto aguarda pelos resultados da candidatura a uma habitação municipal, que sairão em Dezembro, Carla diz que só sai de casa com uma ordem de despejo judicial.

Apesar do rés-do-chão ainda não ter sido alvo de nenhuma empreitada, as ameaças de que as obras podem avançar a qualquer momento já começaram. “Há pouco tempo, quiseram fazer um buraco em minha casa, mas eu só saio daqui com ordem judicial”, assegura. O senhorio ainda lhe sugeriu ir viver para o número 15, mesmo ao lado do seu, mas sem contrato de arrendamento. “Disse-me que podia ir para o número 15, por um tempo, mas eu disse logo que, sem contrato, não ia, porque perdia os meus direitos todos. Ao fim de três meses, mandava-me embora”, afirma. Desde então, a pressão para a família sair tem aumentado. E Carla diz mesmo que se tem sentido vítima de bullying.

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Carla Cunha diz-se vítima de bullying imobiliário.

“O senhorio ameaçou-nos de que a polícia viria aqui, para nos mandar sair, mas eu disse que a polícia só pode vir com ordem judicial. Saiu-lhe furado o plano”, conta. A 18 de outubro, a EPAL cortou-lhe a água. Mais recentemente, ficou sem luz. Entretanto, estas situações já foram resolvidas, mas as sequelas ficaram. “Agora, estou sempre aqui de sentinela, à porta de casa, a ver, se não vem cá ninguém, outra vez, cortar a luz”, desabafa. As filhas perguntam-lhe muitas vezes o que se passa. “Eu gostava que alguém desse uma reposta às minhas filhas. A mais nova até já perguntou se não era suposto os ‘senhores da câmara’ ajudarem as pessoas”, confessa.


Carla da Cunha diz, tal como Patrícia Santos e Paulo Saraiva, que as filhas são a sua prioridade. “Estou num estado de ansiedade que não sei como o meu coração ainda não parou. Se fosse só eu e o meu marido, era diferente. Tenho uma tenda T3 e monto-a em qualquer lado. Agora, com as minhas filhas, vou para a rua e vem logo o Tribunal de Menores atrás de mim”, prevê.

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Carla pondera, agora, escrever uma carta para a Comissão Europeia. Diz que, enquanto houver esperança, não perde a força. “Isto é um flagelo e fatiga muito. As leis têm de ser mudadas, porque enquanto as empresas imobiliárias forem mais importantes que a vida das pessoas, as leis não servem para nada. Até posso perder, mas vou até ao fim. Podem-me atirar ao poço, mas não fico no lodo. A minha arma é a minha voz”, remata.

Alojamento local: um negócio ou uma forma de intimidação dos inquilinos?

Ana Gago, que se encontra a investigar o processo de gentrificação do bairro histórico de Alfama, numa tese intitulada “O aluguer de curta duração e a gentrificação turística em Alfama”, diz ter encontrado “vários casos de pressão psicológica e intimidação dos inquilinos para saírem de casa”, assim como “proprietários que se sentem incomodados com a pressão praticada pelos agentes imobiliários para venderem a sua própria casa”. Outra das conclusões a que já chegou é que o processo de gentrificação – desalojamento da população residente para dar lugar a uma nova população com mais recursos económicos – a que estamos a assistir acaba por ser desvalorizado, porque não há dados concretos sobre o que está a acontecer.

“É impossível saber ao certo quantas pessoas já saíram de Alfama ou de qualquer outro bairro, por não haver nenhuma ferramenta de contagem destes casos. Nem mesmo os Censos nos dão essa resposta, porque não existe nenhuma pergunta sobre onde é que as pessoas moravam antes e porque é que se mudaram. O facto de não ser possível responder a esta questão contribui para que se ignore o problema a nível político”, refere. “Além disso, o número de moradores não está a aumentar, ao contrário do que acontece noutros casos de gentrificação”, explica, ainda, a estudante de 29 anos.

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Rita Silva, presidente da Habita, Associação pelo Direito à Habitação e à Cidade, defende que o combate ao fenómeno dos despejos em massa tem de passar pela “união dos moradores”. “Tentamos que famílias com problemas semelhantes se juntem e procurem, junto das entidades públicas, alternativas”, explica. Já passaram pela Habita milhares de pessoas em risco de serem despejadas. Mas o número de casos de despejo decorrentes da não renovação de contrato, explicado pela necessidade de obras profundas, tem crescido vertiginosamente nos últimos quatro anos. “Estas pessoas acabam por ser despejadas de outra forma. O senhorio, ao não renovar o contrato, convida os inquilinos a saírem. Os vistos Gold, o estatuto de residente não habitual e o alojamento local têm contribuído para o aumento destas situações”, assevera.

Desde que está na Habita, já viu um pouco de tudo. “Já vi pessoas em situações graves de deterioração da sua saúde, depois de serem despejadas. Casos de AVC (Acidente Vascular Cerebral) e depressões são os mais comuns. Já vi pessoas a dormir na rua ou mesmo num carro, na sala de estar de um familiar ou num vão de escada. Também se tem assistido a casos de desestruturação familiar, em que a mulher vai para casa de uma prima e o companheiro não tem lá lugar e tem de ir para outro sítio, ou de filhos que se separam do pai ou da mãe. Há, ainda, os casos de sobrelotação, de 12 pessoas a viverem num T0”, denuncia.

Rita Silva faz um atendimento semanal com pessoas em risco de despejo, ajudando-as a compreender os seus direitos e a melhor forma de actuarem nestas situações. Reconhece, contudo, que esse apoio é insuficiente. “É preciso uma lei das rendas diferente, que proteja os direitos dos inquilinos, promova rendas acessíveis e estabilidade de contratos. É, no entanto, um processo longo e difícil, porque há interesses muito poderosos por trás. Tem de se travar os processos que promovem a especulação imobiliária, andam aí completamente sem rédea”, propõe.

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“O mercado de arrendamento, neste momento, é pró-imobiliário. Precisamos de mais habitação pública e não nos chega anunciarem 10 mil habitações, que são claramente insuficientes. Em simultâneo, tem de haver uma regulação do mercado, que responda às necessidades sociais das pessoas”, sugere ainda.

A presidente da Associação do Património e População de Alfama (APPA), Lurdes Pinheiro – candidata pela CDU nas autárquicas à junta de Santa Maria Maior -, que também acompanha estes casos diariamente, concorda que a lei tem de ser rectificada. “A lei não foi alterada o suficiente. O ideal seria criar uma nova, que estivesse do lado das pessoas. Nós só podemos ajudar e denunciar”, explica. Lurdes Pinheiro considera, ainda, que os lisboetas deixaram de ser vistos como uma prioridade há muito tempo.

“A câmara e o Estado meteram na cabeça que os bairros históricos são para o turismo e há um ‘deixa andar’ por parte da CML, que não está só a ganhar muito dinheiro com isto, como não está a exercer bem o seu poder. Quando um proprietário quer vender uma casa, a autarquia tem direito de preferência e nunca o exerce”, acusa. “A CML era dona de grande parte do património de Alfama e ainda tem muitas casas, que não está a disponibilizar. Deixou de ser uma câmara que trata dos munícipes para ser uma investidora de dinheiro. Para mim, são os grandes responsáveis do que está a acontecer”, considera.

António Machado, dirigente da Associação de Inquilinos Lisbonenses, partilha a mesma opinião de Lurdes Pinheiro. “Muitas famílias foram pressionadas a abandonar as suas moradias. A intervenção da Câmara e de organismos do Estado, como o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), foi muito baixa. Solucionaram uma ou outra coisa, mas, de um modo geral, foram altamente insuficientes. Se legislam, têm de cuidar dos que são atingidos pelas suas próprias medidas legislativas”, afirma. No caso da Rua dos Lagares, António Machado diz que a CML agiu por conveniência. “A Câmara viu-se pressionada a intervir. O processo eleitoral estava muito à vista”, acusa.

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Referindo-se à proliferação do alojamento local nos últimos quatro anos, António Machado defende, ainda, que o que está na origem do que considera ser “um aumento excessivo do turismo” é a “falta de regras”. “O que me intriga mais é que não houve nenhuma regulamentação, quase tudo o que estava devoluto está a ser aproveitado para o turismo e não para habitação normal. É preciso reabilitar o que está em mau estado, mas também é preciso respeitar os residentes. Uma cidade sem habitantes é uma cidade pobre e sem massa crítica, apenas tem consumidores e não utilizadores da cidade”, lembra. A confirmá-lo estão os dados mais recentes do portal do Governo, que indicam que a freguesia de Santa Maria Maior perdeu 1824 eleitores desde as eleições autárquicas de 2013.

“A transformação do turismo está a acontecer muito rápido e, quando assim acontece, o tempo de reacção é maior. O problema está instalado, agora é preciso tratar do doente antes que ele fique em coma. Senão forem tomadas medidas urgentes, daqui a pouco também começamos a ver turismofobia. Ainda não existe, mas já há murmúrios”, sublinha.

Segundo o artigo 65º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que regula o direito à habitação, “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. Incumbe ao Estado, entre outras medidas, “adoptar uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria”.

Questionada por O Corvo sobre o porquê deste direito estar a ser vedado a uma percentagem substancial da população da área metropolitana da capital, a deputada e presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, Helena Roseta, é clara ao apontar as razões. Em depoimento escrito, diz que, “ao contrário do que aconteceu com outros direitos sociais constitucionais, a habitação nunca teve uma lei de bases que desenvolva e concretize as várias dimensões do direito à habitação, estipulando com clareza os deveres do Estado e dos municípios”. Razão suficiente para alterar o estado de coisas. Roseta, lembra que tem vindo a trabalhar num anteprojecto, com o apoio do grupo parlamentar do PS, de uma lei de bases da habitação. “Sem esta lei, o artigo 65º da CRP fica como meta moral”, admite.

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A deputada independente, que também fez parte da equipa que redigiu o artigo 65º da CRP, há quarenta anos, apoia políticas públicas que combatam a especulação e condicionem os investimentos, nomeadamente os investimentos estrangeiros, e pede políticas urbanas de coesão social e territorial. “Não vai ser fácil, mas é o único caminho para um desenvolvimento urbano sustentável”, admite.

Preocupada com os desiquilíbrios no mercado de habitação e a falta de casas a preços acessíveis, sugere, ainda, a criação de mecanismos legais de transparência de preços que permitam ao Estado intervir no mercado e que as cooperativas voltem a ser tidas em conta como uma solução ao nível da habitação jovem. A possibilidade de os municípios estabelecerem limites à quantidade de alojamentos locais é outra das suas propostas. “É uma medida já em prática em várias cidades europeias e americanas, mas em Portugal não é possível com a legislação vigente”, explica.

Helena Roseta, que se congratula com o facto do direito à habitação ter sido e continuar a ser “a grande causa” da sua vida, refere, ainda, que “o levantamento sistemático das necessidades habitacionais devia ser da responsabilidade das freguesias”. “É uma realidade que está em constante evolução e carece de ser avaliada de forma permanente”, sublinha.

No início deste mês, após o acordo realizado entre Fernando Medina e Ricardo Robles, o Bloco de Esquerda impôs um acréscimo de 3.000 casas ao Programa de Renda Acessível. Da negociação entre o reempossado presidente da autarquia de Lisboa e o novo vereador dos Direitos Sociais da CML, resultou, ainda, o compromisso, até ao final do ano, de aprovação do novo Regulamento Municipal de Gestão do Património Imobiliário e da tomada de medidas para abrandar o fenómeno do AL, nomeadamente nos bairros históricos.

Enquanto a Assembleia da República prepara uma nova lei de bases da habitação e a autarquia trabalha em medidas que criem mais habitação acessível à classe média de Lisboa, o número de despejos continua a aumentar.

No ano passado, o Balcão Nacional do Arrendamento decretou um total de 1.931 famílias, quase o dobro dos dados recolhidos em 2013. Só nos primeiros nove meses deste ano já houve 1.480 despejos, de acordo com dados do Ministério da Justiça. Mas estes são apenas os números que se conhecem. Para os dirigentes das associações de defesa à habitação ainda há muito por contabilizar e o número real de despejos deverá ser bastante superior ao que se conhece, uma vez que há cada vez mais processos a correr diretamente nos tribunais.

O Corvo remeteu à presidente do CDS-PP, Assunção Cristas, questões relativas às transformações que o mercado da habitação tem vindo a sofrer. Mas, até ao momento da publicação deste artigo, não obteve resposta às perguntas efectuadas.

Segundo declarações proferidas à comunicação social pelo presidente da Associação Nacional de Proprietários, António Frias Marques, no final do mês passado, os números do Balcão Nacional de Arrendamento representam apenas um terço do total dos casos de despejos.

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