Centro de inovação causa ruptura entre Associação Renovar a Mouraria e câmara

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Samuel Alemão

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VIDA NA CIDADE

Santa Maria Maior

11 Março, 2015


Novo equipamento, que custou dois milhões de euros e resultou da recuperação de um velho quarteirão, deverá abrir a 25 de Maio. Mas não com as características sociais esperadas pelos dirigentes da mais importante associação local, bem como de outros agentes. “Aquilo vai ser mais uma incubadora de empresas, sem ligação ao bairro”, criticam. A Câmara de Lisboa desmente e garante que o CIM será “uma alavanca importante da dinamização social e económica da Mouraria.”

O uso e a forma de funcionamento que a Câmara Municipal de Lisboa (CML) decidiu dar ao novo Centro de Inovação da Mouraria (CIM), com abertura prevista para 25 de Maio e considerado um elemento essencial no processo de regeneração em curso naquela zona da cidade, estão a provocar grande contestação junto de algumas associações locais. Tanto que a mais importante delas, a Associação Renovar a Mouraria (ARM) – que se tem notabilizado pelo trabalho feito junto da comunidade -, decidiu bater com a porta, desistindo de participar no projecto e acusando a autarquia de subverter os propósitos originais do mesmo, “reduzindo um equipamento estratégico a um mero imóvel empresarial”.

O CIM, que desde a concepção do Programa de Desenvolvimento Comunitário da Mouraria (PDCM) estava previsto funcionar como um edifício multifuncional ao serviço da população do bairro e a instalar no então decrépito Quarteirão dos Lagares, viu as suas obras terminarem recentemente. Todavia, quando a câmara o mostrou à comunicação social, no passado 27 de Fevereiro, numa cerimónia em que esteve presente Graça Fonseca, vereadora com o pelouro da Inovação, o CIM foi apresentado como “a primeira incubadora na área das indústrias culturais e criativas na cidade”, recebendo o cognome de Mouraria Creative Hub. Esta é a razão principal de um diferendo que se foi construindo nos últimos meses, mas que é menorizado pela CML.

A 23 de Janeiro, cerca de um mês antes da apresentação do centro – que custou cerca de dois milhões de euros cofinanciados por fundos comunitários e está, até 15 de Abril, a receber candidaturas para alojar “50 empreendedores” de áreas como moda, media, design, música, gastronomia e ofícios manufaturados como a azulejaria, olaria, joalharia ou restauro -, a assembleia geral da ARM deliberou que, “por discordância de conceito”, a associação “não irá participar neste projecto nos moldes em que ele está definido”. Mas mostrava-se disponível para rever a sua posição, se houvesse por parte da autarquia “abertura para uma reaproximação aos propósitos originais do equipamento”.

“A Associação Renovar a Mouraria considera que esta vertente centrada unicamente num conceito de incubação empresarial não cumpre a função para este equipamento, nem no que diz respeito à candidatura aprovada pelo QREN, nem no que diz respeito à proposta aprovada no Orçamento Participativo (OP) 2012”, diz-se logo no primeiro parágrafo de uma carta assinada por Inês Andrade, presidente da associação, e enviada a Graça Fonseca e a João Meneses, director executivo do CIM e coordenador do Gabip (Gabinete de Apoio a Bairro de Intervenção Prioritária) Mouraria, na sequência da tomada de posição desta organização não-governamental.

Recordando os pressupostos fundadores do CIM – os quais, entende a associação, terão agora sido pervertidos em favor de uma visão mais virada para os negócios -, a missiva cita e sublinha o que estava escrito em dois documentos: a candidatura para a Refuncionalização e reabilitação do Quarteirão dos Lagares para criação do Centro de Inovação da Mouraria, co-financiada pelo QREN (Quadro de Referência Estratégico Nacional), por um lado, e, por outro, a proposta vencedora da edição de 2012 do Orçamento Participativo promovido pela Câmara Municipal de Lisboa, na qual se apresenta o CIM como um “Centro de desenvolvimento social, cultural e económico”.

Entre o que estava inscrito no QREN, a carta destaca o facto de o Quarteirão dos Lagres se ter revelado “um potencial tesouro de património medieval e islâmico (…) que apela a uma intervenção integrada para que, através do encontro com as origens islâmicas, contribua para a identidade do bairro e dos seus habitantes”. Sublinha também o papel que teriam “ateliers e pequenas empresas com actividades nas áreas do conhecimento, da criatividade e da inovação, que se pretende dinamizem e potencializem essa identidade encontrada e que contribuam para a promoção turística do bairro”. A carta lembra ainda que na candidatura ao QREN se escrevia que a entidade gestora deveria “garantir o acesso ao logradouro, que se constituirá como um espaço público, para fruição da população.” O que, diz Inês Andrade, não irá acontecer, pois o logradouro terá as portas fechadas.

Referindo-se à proposta vencedora do Orçamento Participativo 2012, a presidente da direcção da Renovar a Mouraria lembra que a mesma apresenta o CIM como um “Centro de desenvolvimento social, cultural e económico”, cujo objectivo último seria “promover e desenvolver a dimensão de aprendizagem e formação profissional, dando um enfoque na recuperação dos ofícios tradicionais em Lisboa”. Além disso, teria “uma dimensão de incubação de projetos empresariais e/ou sociais que envolvam direta e indiretamente a comunidade local”, contribuindo para a “reforçar a dinamização territorial da Mouraria”. Tudo coisas que, teme a dirigente associativa, poderão não passar de palavras bonitas colocadas em papel, mas não concretizadas.

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Ao Corvo, Inês Andrade sublinha as propostas feitas pela associação à estrutura liderada pelo gabinete de Graça Fonseca para, através de “uma governança partilhada” daquele que deveria ser um “equipamento-âncora” do bairro, tentar recuperar o que vê como o “espírito original” do projecto. Entre elas estavam “a constituição de um conselho consultivo integrado por personalidades com intervenção no território e das áreas da cultura e da história relevantes” ou ainda a “abertura do espaço ao público, quer para a comunidade quer como pólo de visitação turística, aspecto fundamental para a dinamização social da zona de implantação”.

Mas tais propostas não terão sido aceites pela câmara, diz Inês. A responsável associativa lamenta tal desfecho e teme que, por causa do mesmo, se estejam a desperdiçar uma oportunidade única e também o dinheiro ali investido, desvirtuando uma ideia original. “Não nos identificamos com o projecto. Aquilo podia ser outra coisa, um equipamento público, com uma dinâmica constante e de portas abertas à comunidade, mas vai ser mais uma incubadora de empresas. Para nós, e como está a ser desenvolvido, trata-se de algo muito redutor, pois não cumpre o que foi aprovado na candidatura ao QREN”, acusa, lamentando ainda que, por isto, a ARM não possa aproveitar o acervo disponibilizado pelo arabista Adalberto Alves, para ali constituir de um núcelo interpretação associado ao estudo da herança islâmica.

No mesmo sentido vão as críticas de Ernesto Possolo, membro da Bairros, rede de desenvolvimento local que integra diversas associações da Mouraria. “Houve um claro desvirtuar do conceito do CIM. A ideia inicial era fazer ali algo mais virado para a inovação social e não para as indústrias criativas. Ora, isto vai ser sempre um corpo estranho aqui na Mouraria. As pessoas não vão ser incluídas num processo que se queria de fortalecimento da coesão territorial, como se chegou a pensar”, considera o activista local, que se diz ludibriado pela câmara e os seus agentes no terreno. Ernesto vai mesmo mais longe, acusando os técnicos da CML de se “aproveitarem da comunidade da Mouraria para aparecer na fotografia” e João Meneses, em concreto, de “nunca ter conduzido bem o processo”.

Ao Corvo, o coordenador do GABIP Mouraria diz, porém, que continua a trabalhar com a Bairros. O mesmo não se podendo dizer, admite Meneses, em relação à Associação Renovar a Mouraria – a quem o responsável preferiu não endereçar nenhuma resposta escrita à carta enviada por Inês Andrade. Reconhecendo tartar-se a ARM de uma entidade “com um papel muito relevante”, o responsável municipal pelo gabinete de revitalização da Mouraria escusou-se, todavia, a fazer mais comentários e disse preferir que O Corvo citasse a sua longa resposta às questões colocadas sobre o assunto pelo jornal Rosa Maria, editado pela associação.

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Contestando as críticas de falta de diálogo, na sua resposta João Meneses diz que “até hoje, todo o processo de decisão foi partilhado e aberto”. “Aliás, e por comparação, talvez até mais aberto do que o próprio processo de tomada de decisão da ARM”, acrescenta. “Ora, tal como a independência e autonomia da ARM devem ser respeitadas, a ARM também deve compreender que a CML/Equipa de Gestão do CIM deve poder gozar de alguma liberdade criativa e de iniciativa”, considera, antes de garantir que a estrutura por si dirigida “terá sempre total disponibilidade e interesse em fazer as alterações que se venham a mostrar necessárias e viáveis”.

João Meneses rebate as acusações de que a nova infra-estrutura funcionará como um objecto estranho na Mouraria. “Sempre defendemos que o CIM tem de estar bem enraizado no território. O seu nome reflecte esse desígnio, o júri constituído para avaliação de candidaturas tem forte ligação ao território e, sobretudo, teremos várias actividades de ligação à comunidade local e total abertura para a acolher de modo espontâneo”, garante. Mas deixa o aviso: “Porém, o CIM também tem uma dimensão municipal e, até, supra municipal, pelo que deverá envolver entidades externas à Mouraria na sua actividade”.

O responsável nega ainda que se esteja a subverter o conceito definido para o centro de inovação. “O CIM não é uma ‘incubadora empresarial’. Os projetos que venham a ser incubados ou apoiados pelo CIM podem ter diversos tipos de personalidades jurídicas, inclusive os que são próprios das organizações sem fins lucrativos. Ou seja, serão muito bem-vindas associações, cooperativas, entre outras”, assevera, deixando expresso o desejo da equipa de gestão do equipamento de que “este seja uma alavanca importante da dinamização social e económica da Mouraria”. Meneses desvaloriza, no entanto, a pretensão de ali instalar o centro de interpretação da cultura islâmica, por desconhecer o grau de “reconhecimento” do espólio reunido e alegando que tal valência seria muito dispendiosa.

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