Autocarros, carros, tuk-tuks e “ubers” disputam espaço e causam o caos no acesso ao Castelo de São Jorge
A poucas dezenas de metros do Castelo de São Jorge, no Largo do Contador Mor, há tuk-tuks a circular numa zona interdita a veículos de animação turística, carros das plataformas de transporte estacionados na paragem de autocarro e viaturas particulares em cima dos passeios. A carreira 737 da Carris fica, frequentemente, parada, à espera que o condutor de um carro mal-estacionado ou o reboque da polícia cheguem. Desde que começou a circular um autocarro maior, o motorista tem mais dificuldade em fazer manobras. Sempre que um veículo não consegue passar o pilarete retráctil, na entrada do castelo, todos os outros têm de recuar, aumentando o congestionamento. Há ainda quem não saiba da existência desse obstáculo e vá contra ele. Episódios que já levaram a situações de pancadaria. As buzinadelas insistentes fazem parte da rotina de moradores e comerciantes, que criticam a passividade das autoridades. A comunidade local está a preparar uma petição, exigindo a resolução do problema.
No Largo do Contador Mor, logo pela manhã, a carreira 737 está parada há mais de dez minutos. Um carro estacionado em cima do passeio impede o autocarro de prosseguir o percurso até ao Castelo de São Jorge. O motorista já ligou para a Polícia Municipal (PM), mas ainda é preciso esperar pelo reboque para desobstruir o caminho. Quase meia-hora depois, o 737 consegue, finalmente, avançar. Os passageiros, a maioria turistas, continuaram o trajecto a pé, mas Maria Neves, 69 anos, ainda está à espera. “Custa-me muito andar, tenho problemas nos joelhos e não posso fazer estas subidas. Tenho uma consulta no centro de saúde, dentro das muralhas do Castelo, mas provavelmente já não vou ser atendida porque já passou a minha vez”, lamenta Maria, moradora na Graça.
Entretanto, todos os carros que seguiam atrás da 737 tiveram de recuar e procurar caminhos alternativos. Um cenário que se repete, várias vezes, no período de uma hora. “Quando isto acontece, informamos da interrupção no caminho, e os turistas saem logo e vão a pé. Nós temos de cumprir horários e esta situação atrasa tudo, além de prejudicar muito os utentes”, explica o motorista, há poucos meses a trabalhar na Carris e que preferiu manter o anonimato. Só há um mês é que o autocarro com 60 lugares começou a fazer este percurso, alteração que também trouxe consequências. “Antes, o mini-autocarro levava apenas 27 pessoas. A Carris pôs esta carreira a circular para conseguirmos levar mais passageiros e ter um serviço melhor, mas como o autocarro é maior também temos de fazer mais manobras e, com carros estacionados no passeio, é impossível”, lamenta.
A grande afluência de turistas ao Castelo e a circulação viária na zona entram, muitas vezes, em conflito
Quem vira à direita, na Travessa de Santa Luzia, também se vê confrontado diariamente com problemas de congestionamento de trânsito. Naquela esquina, é frequente verem-se tuk-tuks encostados à espera de turistas que vêm do Castelo, apesar de ser uma zona proibida a veículos afectos à actividade de animação turística. E há sempre carros com o dístico TVDE – que prestam serviços de mobilidade através das plataformas como Bolt, Cabify, Uber e It´s My Ride – às voltas naquela zona, ou parados na paragem do autocarro, com os quatro piscas ligados, enquanto a carreira 737 não buzina para saírem. Por vezes, há conflitos entre os condutores dos tuk-tuks e da Uber, que disputam o mesmo lugar estratégico para receberem turistas.
À saída de um Alojamento Local (AL), na Travessa de Santa Luzia, enquanto um casal, com dois filhos, aguarda que o motorista de uma viatura TVDE coloque a bagagem na mala do carro, ouve-se novamente o som insistente das buzinadelas dos condutores. Quem sobe na direcção das muralhas também começa a ficar impaciente. Para chegar à Zona de Acesso Automóvel Condicionado (ZAAC) é preciso ultrapassar o pilarete retráctil, que só é accionado para quem tem cartão da Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa (EMEL), mas nem todos o sabem. Não é preciso passar muito tempo junto ao intercomunicador, através do qual os condutores comunicam com um funcionário da EMEL, para o perceber.
O automobilista do primeiro carro da fila tenta, há vários minutos, entrar. “Estou cheio de stock para entregar numa loja, é rápido”, persiste. Apesar da insistência, não consegue entrar, obrigando todos os carros atrás a recuarem. É necessário avisar o último carro da fila, que se estende pela Rua de Santiago, atrasando ainda mais a espera. Os carros começam a apitar, novamente, e os comerciantes da zona espreitam, mas já não ligam. “Isto é um pandemónio, todos os dias. Já estamos imunes. Acontece, essencialmente, por causa dos carros mal-estacionados, mas não só. Há sempre vários carros da Uber a circular e, quando chegam as carrinhas de limpeza dos hostels, nem se pode estar aqui”, diz Tiago Freitas, 30 anos, trabalhador de um café no Largo do Contador Mor.
Quando os carros retomam os lugares iniciais, para subirem até ao Castelo, há uma nova paragem. Desta vez, um condutor discute com um funcionário da EMEL através do intercomunicador. “Comecei as obras ontem, tenho mesmo de entrar. Este carro está associado a este cartão, estará a dar uma leitura errada?”, questiona. Do lado do intercomunicador, o funcionário da EMEL não deixa o condutor entrar, afinal este terá de pedir um novo cartão à empresa de transportes. Mais uma vez, os carros fazem marcha atrás e o caos instala-se. Um pouco depois, uma turista ao volante de um carro alugado tenta entrar, mas só ao final de dez minutos, e depois de um longo diálogo com o operador da EMEL, obtém permissão. Ao mesmo tempo, no cruzamento do largo com a Travessa de Santa Luzia, dois motoristas, um do autocarro da Carris e outro de um veículo TVDE, discutem de quem é a culpa do 737 não conseguir passar.
Carlos Rodrigues, 60 anos, funcionário de limpeza urbana, assiste a tudo indignado. “Isto é uma vergonha. Há pouco tempo, se não fosse um polícia a puxar uma criança, ela era atropelada por um carro que estava a fazer marcha atrás. Já assisti, várias vezes, a episódios de pancadaria entre os condutores”, conta. Atento ao que se passa no local onde trabalha há vários anos, Carlos diz nunca ter visto “tanta inacção” das entidades fiscalizadoras. “A polícia anda aqui às voltas, mas não faz quase nada, só quando houver um acidente grave é que fazem alguma coisa”, critica. As peripécias repetem-se, todos os dias, e, até à noite, acusa, há quem cometa ilegalidades. “Há um sinal, no início da rua, a proibir a entrada de tuk-tuks, mas entram na mesma. Já os vi a virarem numa rua de sentido proibido e ninguém os multa. Colocaram ali um pilarete novo, recentemente, porque alguém, à noite, tira o pilarete antigo, talvez para conseguir entrar. Isto não cabe na cabeça de ninguém”, diz, revoltado.
Inês Santos, 29 anos, moradora no Largo do Contador Mor, assiste e vive este caos todos os dias. “Às vezes, demoro vinte minutos a percorrer um caminho que se faz em dois minutos. Tenho de levar, muitas vezes, o meu avô, com 91 anos, ao hospital de carro e é sempre caótico”, conta. Aparecer um reboque, diz, “é um milagre”, porque, normalmente, os carros ficam parados até que o dono da viatura mal-estacionada apareça. Há umas semanas, num domingo, Inês não conseguia descansar porque o autocarro não parava de buzinar. “Um carro estava parado em cima do passeio e um homem esteve a ajudar o motorista a fazer as manobras de marcha atrás. O veículo é muito maior agora e ocupa tudo. Uma pessoa estacionou em quatro piscas e foi-se embora, só voltou passado quarenta minutos e, quando regressou, nem se apercebeu do que tinha acontecido”, relata.
Segundo a habitante, que mora ali há três anos, mas frequenta desde criança a casa dos avós, também naquela zona, o pilarete retráctil avaria “de dois em dois dias” e, na Páscoa, esteve partido. “Há quem não saiba que existe ali um pilarete, como turistas com carros alugados, e bata nele. Deve ser um prejuízo enorme para a EMEL”, observa. Preocupada, Inês associou o cartão de residente da empresa de mobilidade à Via Verde, “o que deveria dar acesso directo”, mas a mudança “não valeu de nada”, conta. “A ideia era ser mais rápido, mas não está a funcionar. Tenho de esperar na mesma”, lamenta.
Desde que as plataformas de mobilidade – Bolt, Cabify, Uber e It´s My Ride – foram regularizadas, diz ainda, “a dinâmica piorou muito”. “Páram ali, no largo, porque não podem entrar para o Castelo. Ao lado, costumam estar tuk-tuks mal-estacionados, que também têm muitos lugares reservados no miradouro de Santa Luzia. Como é que uma zona nobre da cidade tem tantos lugares reservados a animação turística?”, questiona. A habitante tem ainda dificuldade em parar o carro na zona de estacionamento exclusiva a residentes. “Está cheia de carros estrangeiros e outros que não podem estacionar lá”, critica.
Sempre que quer sair de casa dos pais, ali moradores, Raul Santos, 61 anos, tem de entrar no Castelo e enfrentar multidões de turistas. Desde que a Rua das Damas foi cortada ao trânsito, e a afluência de visitantes estrangeiros naquela zona aumentou, não tem descanso. “Buzinamos, mas não se desviam. Ou temos muita calma ou atropelamos pessoas. É uma via sacra por ali acima, todos os dias, e podia-se resolver revertendo o sentido do trânsito da Rua das Damas”, sugere. O que revolta mais o ex-morador, que nasceu naquela parte da cidade, é, porém, a alegada passividade das autoridades para com a entrada de tuk-tuks numa zona interdita a estes veículos. “Bastava a polícia andar por lá, como elemento dissuasor, para não se cometerem estas ilegalidades. Os tuk-tuks não podem ultrapassar a Igreja de Santiago, mas fazem-no, dias e dias consecutivos, alguns até entram no castelo e ninguém está a controlar isto”, acusa. Raúl não sabe se os pilaretes são furtados, mas que diz os mesmos são repostos com frequência. “Não sei quem rouba, mas até nisto se vê a inoperância das autoridades”, critica.
Há oito anos, viviam no largo quase 300 pessoas, mas, hoje, moram um pouco mais de vinte. Muitos foram obrigados a abandonar as casas, que deram lugar a alojamentos locais – legais e ilegais –, explica ainda Raúl. “São transformações muito profundas que, infelizmente, agora não se podem reverter. Mas nem tudo é irreversível. Acho inconcebível como é que numa capital europeia, onde a quantidade de turistas aumentou muito, não há policiamento. Nem ali, nem nos miradouros de Santa Luzia e das Portas do Sol. Se um dia há ali um desacato vai ser um problema muito grande”, antevê o frequentador da zona, que está a preparar uma petição juntamente com outros moradores, para exigir a resolução destes problemas.
O presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, Miguel Coelho (PS), em declarações a O Corvo, diz apenas que “toda a questão da mobilidade na cidade tem de ser discutida e rediscutida”. “Há sempre pessoas insatisfeitas, mas não tenho uma solução milagrosa no bolso e não sou capaz de dar mais esclarecimentos sobre esse assunto”, sintetiza.