Nova ciclovia e mudanças no trânsito da Avenida de Paris acabam com segundas filas mas estão a gerar controvérsia
As alterações em curso numa via com muito comércio e que, durante décadas, assegurou a ligação viária entre a Praça de Londres e a Avenida Almirante Reis não estarão a ser bem vistas por todos. Na verdade, estão até a dividir uma comunidade, sejam lojistas ou moradores. Mais do que a construção de uma ciclovia, o que está a irritar alguns é a alteração ao esquema de circulação automóvel, com a inversão do sentido entre a Rua Presidente Wilson e a Praça de Londres. Para entrar de carro na Avenida de Paris, é agora necessário fazê-lo através da Avenida João XXI. O suficiente, dizem alguns comerciantes, para arruinar os seus negócios. Há até quem já sinta as consequências e planeie fechar a loja. Outros, porém, encaram com muito optimismo a transformação daquela artéria e acham que o ambiente vai melhorar muito.
A tinta no pavimento ainda cheira, denunciando juntamente com o aspecto imaculado que está pintada de fresco. Mesmo só ocupando ainda uma metade da Avenida de Paris, a nova ciclovia que assegurará a ligação entre a Praça de Londres e o topo da Avenida Almirante Reis já conseguiu dividir em igual proporção comerciantes, residentes e frequentadores daquela artéria. E nas apreciações às alterações introduzidas no esquema de circulação, iniciadas na sexta-feira da semana passada (8 de Março), até há quem valorize de forma diferente os distintos aspectos da intervenção. “Acho muito bem que tenham feito a ciclovia, pois acaba por dar mais movimento de pessoas aqui à rua e até acaba com os carros em segunda fila. Acho é que podiam ter feito isto sem mudar o sentido do trânsito, pois o que isto vai provocar é um maior congestionamento”, diz Manuela Rodrigues, 47 anos, gerente da pastelaria Bolos do Bairro. “São coisas que, às vezes, são decididas nos gabinetes, sem a devida avaliação”.
A mudança do sentido a que se refere Manuela refere-se à tal metade da Avenida de Paris onde a intervenção já está terminada, entre a Rua Presidente Wilson e a Praça de Londres. O trânsito automóvel passou agora a circular em direcção a esta praça, a partir da Presidente Wilson, quando antes nela se iniciava e assim garantia uma ligação ininterrupta à Avenida Almirante Reis. Mas esse hábito de décadas teve um fim. Com as mudanças trazidas com a obra incluída no projecto da rede “Lisboa Ciclável”, concretizado pela EMEL em parceria com a Junta de Freguesia do Areeiro, além da via para bicicletas, todos os carros passam a aceder à Avenida de Paris e à contígua Praça Pasteur através da Avenida João XXI e da Rua Presidente Wilson, onde a circulação bifurca: à direita para a Praça de Londres, à esquerda para A Avenida Almirante Reis. Sempre com um limite de velocidade de 30 quilómetros por hora. O objectivo é acalmar o tráfego, melhorando a segurança rodoviária.
Ainda falta acabar as obras no troço em direcção à Avenida Almirante Reis
Uma estratégia que tem vindo a ser implementada um pouco por toda a cidade, nos últimos anos, com reconhecidos benefícios sobretudo para quem circula a pé e de bicicleta. Mas que, ainda assim, não agradará a todos. Não só aos que contestam a redução do prevalecente espaço dado ao automóvel – assumida, aliás, como central na estratégia municipal de mobilidade e gestão do espaço público -, mas também a quem veja nas bicicletas e trotinetas “uma praga”, como por aí se vai ouvindo. “Ainda ontem ia sendo atropelada por uma bicicleta”, queixa-se a cabeleireira Manuela Ferreira, 53 anos, embora assegure que nada tenha contra esta forma de locomoção, mas sim contra “os que não cumprem as regras e andam em cima do passeio”. Ainda assim, a pequena empresária contesta as mudanças naquela artéria, sobretudo pela alteração do esquema de circulação viária. “Esta transformação transtorna-me um bocado o negócio. Não pela ciclovia, mas sim pela mudança de sentido”. Em poucos dias, garante, já começou a sentir os efeitos. “As clientes que vêm de carro estão a desmarcar”, garante.
De igual fenómeno se queixa Marco Oliveira, 40, gerente da loja “Marco e os Animais”, especializada em tudo o que seja necessário para a bicharada doméstica. E com resultados bem mais drásticos. Tanto que já decidiu encerrar o estabelecimento até Maio. Tudo por causa das mudanças na circulação e, com a construção da ciclovia, impossibilidade de paragem do carro em segunda fila. “Está a prejudicar-me o negócio de forma dramática. Só nestes dias em que as alterações estão em vigor, a minha facturação já caiu na casa dos 80%. Tive clientes a ligarem a perguntar se tínhamos fechado e a irem directamente à nossa loja de Campo de Ourique. Muita gente encostava o carro para vir comprar uma saca de ração ou de terra e agora não o pode fazer. Assim não dá para continuar aqui”, diz, referindo preferir encontrar uma solução na zona do Saldanha. O empresário acrescenta ainda outras objecções ao novo cenário, nomeadamente o potencial aumento do congestionamento de tráfego e o facto de, “sendo esta uma zona com muitos idosos, aumentar o risco de atropelamentos por ciclistas”.
Tal visão é, no entanto, refutada por outros comerciantes e lojistas da Avenida de Paris, que olham com optimismo para as mudanças introduzidas. “Acho óptimo que tenham feito isto, a rua até fica mais arrumada. E até vai dinamizar, criando aqui movimento de pessoas”, diz Tatiana Monteiro, empregada de uma loja de vestuário situada praticamente na esquina com a Praça de Londres. “Antes, havia sempre muitos carros em segunda fila e buzinadelas o tempo todo”, complementa a colega Cristina Fernandes, ambas na casa dos “vintes”. Idêntica visão têm duas funcionárias da The Coffee Library Lisboa, café especializado em “donuts”. “As ciclovias são importantes para a cidade e o ambiente. São mais seguras e significam menos poluição”, dizem em uníssono Carine, 24, e Gabriela, 18. Para Isabel Serra, 47, funcionária da cafetaria Empório do Chá, as mudanças observadas são largamente positivas. “Acabaram com a segunda fila, o que é óptimo. Agora, até há imensos lugares de estacionamento disponíveis”, observa.
Já Pedro Leal, 32 anos, empregado numa casa de fotocópias a poucos metros, tem uma teoria sobre os motivos do descontentamento que amiúde se ouve por ali. “Como não tenho carro, nem carta de condução, não me faz confusão. Acho que haverá aqui uma resistência à mudança de algumas pessoas, mais apegadas ao carro. Mas a maior preocupação talvez tenha que ver com o atravessar fora da passadeira, como muita gente faz. Olham só para um lado e, por força do hábito, não reparam que os carros vêm do outro”, explica. De resto, só tem elogios a fazer ao espaço concedido às bicicletas. “Gosto de ver a cidade a investir nas ciclovias”, diz. O mesmo pensa o morador Luís Gregório, 42, salientando o fim das segundas filas, “dos constantes buzinadelas e de carros a alta velocidade” como algo salutar. “Qualquer pessoa com bom-senso acha isto uma boa ideia. Estamos numa zona residencial”, lembra o também ciclista.
Nem todos os que ali vivem, porém, pensam de forma semelhante. Uma das vozes discordantes é a de Manuela Ramos, 60, com quem O Corvo se deparou num momento de evidente estupefacção perante o que estava a observar. “Isto parece a Feira Popular. Já é difícil estacionar aqui, agora nem sei como vai ser”, proclama a residente daquela avenida, onde mora desde que nasceu. Manuela assume uma clara “irritação com aquilo em que Lisboa se está a transformar”, sem especificar, mas também não esquece os supostos engulhos à circulação automóvel. “As pessoas vão ter de dar uma grande volta para aqui chegarem”, queixa-se. O mesmo pensa Júlio Dinis, 68, dono do restaurante Central de Paris, a funcionar ali desde 1950. “Passava aqui um trânsito que era uma coisa louca. Agora está parado. Não veio trazer benefício nenhum”, avalia.
A isto, Ana Rebelo, 55, gerente de um outro salão de beleza na avenida, acrescenta a “maior dificuldade em estacionar e de circulação em situações de emergência”, consequência do estreitamento da via única destinada ao trânsito automóvel. A ciclovia vê-a como um investimento desnecessário. “Não vejo assim tantas bicicletas aí a passar”. Mas mais relevante nesta mudança, critica, “é que agora há menos movimento, menos carros, e isso não é bom para o comércio”, diz. Uma avaliação que, na verdade, até coincide com a feita há exactamente um ano pelos comerciantes da vizinha Avenida Guerra Junqueiro. As vozes de descontentamento ter-se-ão entretanto calado. “Somos sempre um pouco avessos à mudança”, admite Ana Rebelo.