Moradores e comerciantes do Bairro Alto dizem que EMEL está, cada vez mais, a dificultar-lhes vida e negócios

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Sofia Cristino

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MOBILIDADE

Misericórdia

15 Fevereiro, 2019

Os familiares dos residentes do Bairro Alto sentem-se revoltados por não conseguirem entrar nesta zona de acesso automóvel condicionado. Para acederem aquela área, por pouco tempo, para ajudarem os pais, muito deles idosos com mobilidade reduzida, ou apenas descarregarem compras, têm de comprar um cartão com saldo de 25 euros. O que lhes permite estar meia-hora lá dentro. “Só estamos a pedir para nos deixarem entrar cinco ou dez minutos, não estamos a exigir estacionar”, asseguram. Já os comerciantes estão incrédulos com o aumento, no mês passado, do valor anual do dístico para as empresas, de 19 para 320 euros. Queixam-se ainda de haver “demasiadas excepções” para os outros. Durante o dia, existirão automobilistas sem dístico ou matrículas estrangeiras a entrarem e sair “quando querem”. Os táxis não podem estacionar no Bairro Alto, mas, à noite, fazem “praça” lá dentro. A EMEL desmente, porém, que tenham havido alterações tarifárias e diz-se empenhada “em proporcionar uma melhor mobilidade a quem vive e circula no bairro”.

Quem vive, trabalha ou visita o Bairro Alto, na freguesia da Misericórdia, sente-se injustiçado pela actuação “prepotente” da Empresa Municipal Mobilidade e Estacionamento de Lisboa (EMEL). O acesso condicionado à zona histórica remonta a 2001, mas quem mora e frequenta o bairro queixa-se da empresa municipal nunca ter sido tão “intransigente” com quem lá vive e, ao mesmo tempo, “benevolente” com quem vem de fora. A comunidade considera que o parqueamento tem de ser organizado, mas não da forma como está a ser feito. “O estacionamento, antes, era selvático. Agora, porém, vemos situações surreais, como táxis estacionados, quando só podem deixar ou apanhar pessoas, e carros sem dístico e com matrícula estrangeira parados”, relata Fernando Martha. Os episódios que aborrecem mais o morador – que reside no Bairro Alto, mas fora da zona condicionada – estarão, porém, relacionados com o facto da EMEL não deixar os familiares dos habitantes mais idosos, alguns a precisarem de auxílio, entrarem por poucos minutos.

“Não admitimos que nos impeçam de circular de carro quando temos um familiar doente. Só estamos a pedir para nos deixarem entrar cinco ou dez minutos, não estamos a exigir estacionar. E, tendo a EMEL forma de confirmar quanto tempo as viaturas permanecem lá dentro, não se percebe esta proibição severa”, critica.  Todas as semanas, haverá pelo menos uma história de um familiar de um morador que não conseguiu passar nos pilaretes retrácteis, localizados nos acessos ao bairro histórico. “Isto é um pandemónio, às vezes, as pessoas estão aos gritos para um pedaço de metal, porque os funcionários que falam através do intercomunicador também chegam a insultar-nos. As regras têm mesmo de ser alteradas e a formação dos funcionários também”, sugere.

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O dístico anual para empresas custa agora 320 euros

Teresa Simões reside em Sesimbra, mas, todas as semanas, visita a mãe, com 84 anos e mobilidade reduzida. Tal como muitos familiares de moradores, não pretende permanecer muito tempo dentro do bairro. Para lá entrar, teria de adquirir um cartão de visitante, pelo valor de 25 euros, que lhe permitiria aceder e estacionar dentro do Bairro Alto, por trinta minutos, mas  Teresa Simões recusa-se a adquiri-lo. “Eu e os meus filhos só queremos entrar e sair, nada que demore mais de quinze minutos. Queremos ir buscar a minha mãe ou levar-lhe as compras do mês, como uma garrafa de gás. E é exigido um cartão por cada viatura. Não faz sentido pagarmos, cada um, 25 euros para irmos lá poucas vezes”, diz.

 

O Bairro Alto perdeu três mil moradores, desde 2011, e, apesar de receber alguns novos, quem lá mora são maioritariamente idosos, com dificuldades de locomoção. Os familiares dos habitantes pedem, por isso, “alguma flexibilidade” por parte da empresa que gere o estacionamento da cidade. “Sentimo-nos revoltados pela prepotência da EMEL. Enquanto os nossos familiares estão presos dentro do bairro, assistimos à entrada e saída, a toda a hora, de viaturas sem selo de residente ou outro tipo de dístico, é muito injusto”, critica.

 

A falta de controle dos carros que circulam e estacionam no bairro é outra das críticas mais ouvidas. João Ganho, funcionário de um bar, diz ter muitas dúvidas por esclarecer. “Quando há espectáculos de fado, os taxistas fazem fila para apanharem os turistas, principalmente na Rua do Norte. E ficam lá parados muito tempo, fazem ‘praça’”, conta. A explicação para a entrada de viaturas sem dístico no bairro, arriscam alguns, poderá estar na divulgação de um código de acesso à garagem de um hostel. “Tendo o código do hostel, qualquer pessoa pode entrar, independentemente do carro”, explica Fernando Martha. Algo corroborado por Bárbara Ferreira, moradora há quase quarenta anos. “Já me apercebi que alguém faculta o código, para que as pessoas possam entrar e, depois, estacionarem onde quiserem, nomeadamente nos lugares dos moradores”, diz.

 

 

Quem lá vive, apesar de pagar um valor anual de 12 euros por dístico de residente, muitas vezes não encontra lugar para estacionar e acaba por ser multado. “Uma vez, parei o carro junto a um passeio, na Rua da Atalaia, porque não havia mais lugares. Fui multado, mas estranhei que os restantes carros ali estacionados não fossem também autuados. Mais tarde, um funcionário da EMEL disse-me que não tinham autorização para multar quem vem de fora”, relata Jorge Dias, ali a viver há três anos. O morador diz que a gestão do estacionamento é “caótica”, e que há muitas irregularidades a carecer de explicação. “Isto tem fases. Uma vez, o sistema de restrição à entrada de viaturas esteve avariado, durante um mês, e entravam todos. Foi um período para esquecer, nunca consegui entrar ao fim-de-semana”, recorda.


 

Muitos moradores estacionam no parque de estacionamento da Calçada do Combro, porque os lugares de parqueamento no Bairro Alto são insuficientes. Para alguns, não faz sentido pagar outro dístico para entrarem esporadicamente no bairro. “Fico meses sem entrar com o carro e, se preciso de, um dia, descarregar compras, não me facilitam o acesso por uns minutos. O que me revolta mais é que vejo dentro do bairro muitos carros de comerciantes estacionados nos lugares dos moradores”, conta Bárbara Ferreira.

 

A aparente “falta de sensibilidade” dos funcionários que falam através do intercomunicador colocado nos acessos junto ao Bairro Alto também não agrada os moradores. “Logo no início, cheguei à meia-noite a casa, com duas crianças a dormir dentro do carro, e não consegui arranjar lugar fora do bairro. Pedi para me deixarem entrar só para deixar os miúdos e, só depois de muita insistência, e os mostrar através da câmara, lá me deixaram entrar”, conta ainda Bárbara. “Se tivermos a sorte de estarem bem-dispostos, até pode correr bem, mas o critério não devia ser a boa disposição”, acrescenta Jorge Dias.

 

 

 

Todas as semanas, acontece um episódio caricato. Um funcionário da Câmara Municipal de Lisboa (CML) ter-se-á deslocado ao Bairro Alto para fazer um arranjo na Escola Básica do 1º ciclo e Jardim de Infância Padre Abel Varzim, mas, por não ter autorização para entrar, acabou por não realizar o serviço. “Lembro-me de ele dizer que vinha para aqui trabalhar e não o deixavam, e estamos a falar de uma escola que é da responsabilidade do município. É ridículo”, conta Fernando Martha. A própria esquadra da Polícia de Segurança Pública (PSP) terá feito uma participação junto da EMEL por não a deixarem sair. “Estavam os carros da polícia, com os rotativos ligados, e pessoas detidas dentro do carro, e não os deixaram passar. É surreal”, conta. E repetem-se histórias de transportadoras barradas junto ao pilarete de acesso ao Bairro Alto. “Há sempre fornecedores que não conseguem entrar e entregar um frigorífico ou um móvel, por exemplo. Faço compras online, num hipermercado, e também não podem entrar. Podiam pensar noutro tipo de regras”, sugere Jorge Dias.

 

Quando Rui Seixas começou a trabalhar na Mercearia do Pai Júlio, na Rua do Diário de Notícias, em 2013, também não esperava que a forma de actuação EMEL no bairro histórico lhe causasse tanto transtorno. Durante cinco anos, pagou 19 euros anuais por um dístico de empresa, mas, em Janeiro passado, o valor deste comprovativo aumentou para 320 euros. “Temos dois cartões destes, por isso, o valor duplica. É uma quantia exorbitante para qualquer estabelecimento comercial situado no Bairro Alto. Já enviamos emails para tentar perceber esta subida de preço, mas, até agora, não nos responderam”, conta. O dístico permite a entrada de um veículo para operações de cargas e descargas, desde que este acesso seja feito entre as 8h00 e as 20h00.

 

Para facilitarem a circulação de todos os veículos, os comerciantes e trabalhadores da zona falam entre si, mas, apesar do diálogo, nem sempre conseguem revezarem-se. “Há uns dias, cheguei com a carrinha transportadora, e faltavam três minutos para as 8h, e não levantaram o pilarete. Dadas as dificuldades em entrarmos, podiam facilitar. Nesse dia, acabei por conseguir entrar, mas já aconteceu não baixarem o pilarete e ter de vir a carregar os produtos todos por aí acima”, queixa-se. O comerciante diz que a empresa municipal não fez uma gestão planeada do Bairro Alto e aponta vários motivos para o congestionamento sentido, diariamente. “Querem vender mais dísticos do que os lugares que têm. Abrem novos espaços e ninguém controla isto, é tudo feito um bocado sem regras. E entram muitas pessoas que não deviam entrar”, critica. A subida do valor dos dísticos é alvo de críticas por todo o bairro. “Pago mais 200% do que no início, é um absurdo, e ninguém nos deu uma explicação para este aumento”, lamenta João Ganho, funcionário de um bar.

 

A proprietária de um restaurante, aberto há menos de um ano, também não está satisfeita com a gestão do estacionamento. “Temos meia-hora para descarregar os produtos alimentares, é muito pouco tempo, e sai-nos muito caro. Também temos dificuldade em arranjar pessoas para trabalharem aqui, porque é muito difícil trazer carro e, infelizmente, Lisboa está muito mal servida de transportes públicos”, critica Sandra Pereira. O valor anual do dístico é outra das preocupações. “O pagamento de 300 euros anuais para quem acabou de iniciar um projecto não é nada bom, mas também é muito difícil para quem cá está estabelecido. Quem quer fazer um serviço de qualidade, com produtos de qualidade, vê-se muito limitado”, diz.

 

 

Outra comerciante, que não quis ser identificada, também está descontente. “Tentamos atrair turistas e dar o nosso melhor para receber as pessoas. Com estas regras todas e mais taxas e encargos financeiros, começamos a ter mais dificuldade em sobreviver. É um trabalho contraproducente”, critica. Fernanda, moradora no Bairro Alto há quarenta anos, diz haver problemas diários com a entrada e saída de viaturas. “A funcionária da loja de cerâmica, que já está cá há vinte anos, está sempre a pedir-me ajuda para carregarmos os artigos para a loja, porque não consegue entrar. Não é normal estragarem o negócio às pessoas”, critica.

 

O presidente da Associação de Moradores do Bairro Alto mora ali desde 2003, dois anos depois da EMEL começar a operar naquela zona. Para Luís Paisana, a empresa tem vindo a alterar muito a regulamentação, nos últimos anos, e não o estará a fazer da melhor forma. “As regras são rígidas e há demasiadas excepções. Há automobilistas que entram e saem, quando querem, e outros sofrem uma falta de permissividade enorme, que não se consegue entender”, critica. A situação tem vindo a agravar-se, explica, porque os pilaretes estarão, várias vezes, avariados. “Já fizemos intervenções na Assembleia Municipal de Lisboa (AML) e tentámos chegar à fala com a EMEL, mas é muito difícil conseguirmos”, conta.

 

Luís Paisana considera que se tem assistido a um “despovoamento muito acelerado” do Bairro Alto, nos últimos anos. E, como os moradores são maioritariamente idosos, e não têm carro, o dirigente associativo tem dificuldade em perceber o congestionamento sentido. “Há situações duvidosas. Normalmente, quem trabalha nos bares e por qualquer razão que desconhecemos, consegue entrar mais facilmente. Alguns comerciantes queixam-se desta discriminação. E os moradores são sujeitos a inquéritos diários”, conta. “É tudo muito estranho”, conclui.

 

Questionada por O Corvo sobre a alteração do valor anual do Dístico de Comerciante, de 19 para 320 euros, a EMEL garante que este “não sofreu nenhuma alteração”, e confirma que a tarifa será de 25 euros mensais (aos quais acrescem 12 euros de emolumentos). Quanto ao Dístico de Cargas e Descargas, que permite o acesso de um veículo, entre as 8h00 e as 20h00, por quatro horas, a EMEL diz que este período de tempo máximo “é suficiente” e declara-se preocupada “em proporcionar uma melhor mobilidade a quem vive e circula no bairro”. A empresa municipal avança ainda que “todas as pessoas com necessidade de aceder aos Bairros Históricos, como é o caso do Bairro Alto, podem fazê-lo adquirindo o Cartão de Visitante, que permite o acesso e estacionamento gratuito de veículos por períodos de meia-hora”. “A partir dos 30 minutos iniciais gratuitos, o estacionamento nos Bairros Históricos tem o custo definido nos Regulamentos Específicos aprovados na altura de implementação destes sistemas de acesso e estacionamento condicionados (1 hora € 15; 2 horas € 30; a partir da 2ª hora € 30 por hora)”, diz, em depoimento escrito.

 

Quanto à aparente entrada de carros sem dístico, e com matrícula estrangeira, a empresa municipal diz que “o acesso aos bairros é exclusivo a residentes, pelo que a inexistência de dístico visível não pressupõe um estacionamento abusivo”. Para situações que não se encontrem plasmadas no regulamento, diz ainda, “pode ser solicitada à EMEL uma autorização especial de acesso pontual, desde que devidamente fundamentada, e mediante a indicação da data e da matrícula da viatura”. Segundo a gestora do estacionamento, em Lisboa, os táxis “podem entrar para recolher e largar passageiros, num período de 30 minutos, desde que em serviço, não necessitando para isso de um Cartão de Visitante, uma vez que estão devidamente caracterizados”. “Os tuk tuk estão proibidos de entrar no Bairro Alto, por despacho camarário. Actualmente, os TVDE (transportes em veículo descaracterizados a partir de plataforma electrónica), não sendo equiparados a transporte público, são obrigados à aquisição de um Cartão de Visitante e ao cumprimento das respectivas regras”, conclui.

 

O Corvo tentou contactar a presidente da Junta de Freguesia da Misericórdia, Carla Madeira (PS), mas, até ao momento da publicação deste artigo, não conseguiu chegar à fala com a autarca.

 

Nota redactorial. Texto editado às 20h25 de 15 de Fevereiro. Acrescenta depoimento da EMEL sobre o estacionamento no Bairro Alto. Corrige erro factual: onde se lia “Dístico de Cargas e Descargas”, passa a ler-se “dístico de empresa”. Pelos erros, O Corvo pede desculpa aos seus leitores.

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