Vila Dias assustada com novas rendas

REPORTAGEM
Francisco Neves

Texto & Fotografia

URBANISMO

Beato

7 Março, 2013


Vila Dias está em convulsão. As rendas aumentam e muitos receiam não ter como pagar. Vão subir para os 300 euros nos próximos cinco anos. Já há gente de fora a chegar à vila operária de Xabregas. E ainda podem vir os ucranianos.

Lucília Gonçalves, reformada de 80 anos, tem sorte no meio de tanta pobreza. Sobe o íngreme Beco dos Toucinheiros a caminho da casa, em Vila Dias, bairro com mais de cem anos, construído para operários têxteis e do tabaco em Xabregas. “Aqui nasci, aqui casei, aqui enviuvei. Ainda durmo no mesmo quarto onde nasci”, diz, enquanto aproveita para tomar fôlego. Entende que lhe subam a renda de casa dos 3,10 euros que pagava para 46,33. Mas tem vizinhos que enfrentam subidas muito maiores.

A comissão de moradores que os representa foi, a 19 de Fevereiro, à Assembleia Municipal pedir ajuda para resistir às ameaças de despejo e aos valores propostos por uma empresa de restauro de imóveis, que diz representar o dono do núcleo urbano, fundado por um tal Carlos Dias, segundo se diz. Num apelo lido à assembleia, diziam que estão a ser pedidas rendas de 150 e 190 euros, sujeitas a actualizações anuais e mostraram cartas exigindo os novos valores ou a entrega, pura e simples, do andar.

Diziam ainda que “a maioria dos habitantes são idosos com mais de 80 anos e com reformas miseráveis. Antigos operários e operárias.” Por fim, pediam aos presidentes da Câmara e da Assembleia Municipal de Lisboa que viessem ao bairro ver as “casas degradas sem casa de banho e cozinhas”. Mas eles “borrifaram-se”, lamenta o homem que leu o pedido de ajuda.

Na reunião na Avenida de Roma, o socialista Miguel Coelho pareceu tocado pelas queixas. Em Vila Dias, disse, “constituiu-se um fundo imobiliário para expulsar as pessoas que sabe que não podem pagar”. A nova Lei das Rendas, acrescentou antes de se prestar a visitar o bairro, “é uma iniquidade”, “um ajuste de contas com quem tem arrendamentos anteriores a 1990”. Em Vila Dias ainda o esperavam no passado dia 6.

“Só tenho uma sanita na cozinha, ao lado do lava-louça. Tenho que ir tomar banho a casa de uma cunhada”, queixa-se uma moradora deste bairro pobre de tons avermelhados, entalado entre a linha férrea do norte e o ramal que, no Beato, faz ligação a Entrecampos.

“Há muitos esgotos a dar de si. E como alguns atravessam as casas, a porcaria está a sair pelas paredes. E o senhorio não quer saber de nada disto”, diz Natália Marques, outra residente da vila operária. Não é claro quem seja o senhorio. Já há dois anos, o PSD propusera que a CML tentasse saber de quem se trata e o obrigasse à requalificação das habitações. A comissão de moradores fala de uma mulher que não vêem “há mais de 40 anos”. Na realidade trata-se de duas, mãe e filha, identificadas nas cartas que têm alarmado os moradores.

José Henriques, o procurador e gerente da empresa de restauro de imóveis Retoque, teve há um mês um desaguisado com Vila Dias, quando moradores o impediram de fazer a pintura de fachadas de umas casas a arrendar a pessoas de fora. Porque, apesar da degradação patente de alguns apartamentos, há um negócio em volta deles. A cargo de uma empresa de mediação imobiliária ligada à Retoque.

Vladimiro Marques, em Vila Dias há 18 anos e agora de baixa por ser “cardíaco”, diz que têm chegado novos moradores ao bairro sobranceiro ao Beato. “Há aí pessoas de fora a pagar 300 euros”. Foi ele quem leu a carta na Assembleia Municipal de Lisboa. Com um curso de Protecção Civil contra incêndios, é por walkie-talkie que manda tirar a bica no bar da colectividade, que ele não demora a chegar.

De resto, as comunicações no bairro têm andado difíceis, sem telefones fixos nem internet. Resultados de um roubo de cobre. De 50 euros, Marques passou para uma renda de 63, após falar com o procurador. “Mas o contrato termina em Agosto e, nessa altura, vai pedir-me 150 euros. Só recebo 500 da baixa, eu e a mulher não chegamos a fazer mil euros. A casa tem um quarto e uma cozinha e foi tudo restaurado por mim”, afirma, já defronte do café fumegante.

O procurador tem substituido ameaças de despejo por propostas de negociação, mas os destinatários temem pela evolução dos valores que a nova lei permite. Por isso, a Associação de Inquilinos Lisbonenses, que consultaram, sugeriu-lhes que façam contratos por cinco anos, de modo a ganharem tempo.

Vladimiro Marques reconhece que os cerca de 190 moradores do bairro histórico não são todos iguais.Também há aqui jovens no Rendimento Social de Inserção e há inquilinos – “uns vinte” – que “assinaram contrato e deixaram de pagar renda…”.

“Nós, comissão, queremos que todos paguem, mas que seja um valor acessível. Queremos um pagamento correspondente ao nível de cada um. Os que não pagam não defendemos”.

“Uma pipa de massa”

“Não queremos mandar ninguém para a rua”, garantiu ao Corvo José Henriques. “Queremos é ter Vila Dias cheia, cheia de gente boa, que é a maior parte. Mas o que tem de acabar são as rendas de três euros. Eu digo a toda a gente que o nosso objectivo é ter as rendas a 300 euros no prazo de cinco anos. Por que não havemos de pedir 300 euros, se é um preço justo?”, questiona o gerente.

“Temos à volta de uns 40 ucranianos a pagar 300 euros por um simples quarto. Se eu lhes disser se querem uma casinha na Vila Dias, por esse preço, o que é que acha que acontece? Caem lá todos!”, afirma. O empresário diz que corresponderá ao pedido da Junta de Freguesia do Beato para que gerisse o conflito com serenidade e que conta levar a água ao seu moinho. “Quem faz mais guerra são os que não pagam renda”, acusa. Diz, no entanto, que não passam de seis a oito os inquilinos nessa situação.

“Em Vila Dias há basicamente três tipos de situação: os que têm antigos contratos de seis meses, os com contratos a cinco anos e os ilegais – que ocupam casas. Com os ilegais, está quase tudo resolvido, vão assinar novos contratos segundo a nova lei, com rendas entre os 150 e os 190 euros. Fizemos algumas excepções, baixando estes valores, atendendo ao caso humano”, acrescenta. Segundo ele, cerca de um terço dos moradores – os dos contratos a seis meses – vai passar para valores iniciais de “quarenta e tal euros”, sendo que quem tenha mais de 65 anos verá a subida da renda condicionada.

Interrogado sobre se a sua empresa tenciona resolver o mau saneamento de Vila Dias, José Henriques começou por dizer que isso é competência pública e não privada, acrescentando que, “em casos pontuais” tem ajudado com materiais seus alguns moradores dispostos a fazer obras. Tanto mais que não é simples: “É preciso ligar alguns esgotos ao colector que passa na rua, só que para isso é preciso partir a casa toda!”

Pelo modo como fala, o homem das obras e da mediação parece optimista. Se bem que reconheça que, na conjuntura, “não nada em dinheiro”, deixa uma promessa: “Vamos investir em Vila Dias uma pipa de massa!” Fala em obras no valor de quatro milhões de euros. Mas é uma coisa para ir “com mais calma”.

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