Escola de Marvila fechada em 2010 por causa do TGV e deixada ao abandono continua à espera de uma solução
Mandada encerrar à pressa, para permitir a desejada construção da Terceira Travessia do Tejo, a usar pela ferrovia de alta velocidade, a Escola Secundária Afonso Domingues definha desde então. Os roubos e a vandalização do estabelecimento em que estudou José Saramago começaram pouco depois de fechadas as portas. E têm-se mantido ao longo dos últimos oito anos. Tal como a indecisão da administração central sobre o que fazer com o complexo escolar onde, em 2009, havia investido em computadores, quadros interactivos e rede wifi. A decadência alastrou ao exterior, convertido em vazadouro de obras e lixeira. O interior do estabelecimento continua a ser frequentado por quem lhe apetecer. E até serve de cenário a competições de paintball. Fala-se na possibilidade de poder acolher a Protecção Civil Municipal de Lisboa.
O estado de degradação da antiga Escola Secundária Afonso Domingues, em Marvila, encerrada em 2010 por causa do projecto de construção de uma Terceira Travessia do Tejo (TTT) entre Chelas e o Barreiro, que permitiria a passagem de um desejado comboio de alta velocidade, não é já novidade. Desde que fechou portas, no verão desse ano, o equipamento público constituído por três edifícios tem sido sujeito a uma intensa campanha de vandalização e roubo, agudizada pela negligência da administração central em zelar por esta fracção do seu património. Isto apesar de o Estado ter investido na sua reabilitação, ainda no início do ano lectivo 2009/2010, com a aquisição de novos computadores, quadros interactivos e a instalação de uma rede wireless em todo o recinto. Um gasto do erário público que se veio a revelar de escassa utilização. Agora, aos domingos, serve como cenário de combates de paintball.
A decadência extravasa as paredes grafitadas, no interior e no exterior, do conjunto de imóveis e alastra à zona circundante, convertida em lixeira e vazadouro de detritos de construção. Quem passa pela Rua Miguel Oliveira, na fronteira entre as freguesias de Marvila e do Beato, não pode deixar de reparar no entulho acumulado dos dois lados da via, a maior parte do qual em terrenos municipais. Um cenário, entretanto, alterado na manhã desta quinta-feira (29 de Novembro), através de uma operação de limpeza do local, realizada já depois de a situação ter sido publicamente denunciada, esta semana, pelo grupo cívico Fórum Cidadania LX e de O Corvo ter interrogado quer a Câmara Municipal de Lisboa (CML) quer as juntas de freguesia de Marvila e do Beato, bem como o Ministério da Educação.
Tem sido este o quadro habitual frente à escola desactivada
A solução para resgatar o edifício ao abandono poderá agora passar pela instalação da sede do Serviço Municipal de Protecção Civil de Lisboa, apurou O Corvo. Algo que estará a ser negociado pela Câmara Municipal de Lisboa junto da administração central, mais de três anos após se ter tentado, sem sucesso, transferir para ali os Bombeiros Voluntários do Beato, há muito instalados precariamente na Rua do Grilo. Enquanto tal não sucede, há quem, como precisamente o Fórum Cidadania LX, peça uma solução integrada para a zona, sugerindo que os terrenos em frente da escola sejam transformados num parque urbano, o qual permitiria a ligação da Estrada de Chelas à mata do Bairro Madre de Deus e à Estrada de Marvila. Na proposta, além de se recomendar a criação de caminhos pedonais e de ciclovias nesse almejado novo parque urbano, preconiza-se ainda a reabilitação do antigo estabelecimento de ensino.
Foi no início de Maio de 2010 que se ficou a saber que a Escola Secundária Afonso Domingues, na altura com 290 alunos e 80 professores, teria que fechar as portas o mais rápido possível, devido aos planos do governo então liderado por José Sócrates para avançar com a Terceira Travessia do Tejo (TTT), a utilizar por uma planeada ligação ferroviária de alta velocidade. Naquele momento, a televisão SIC, que avançara com a notícia, explicava que a direcção do estabelecimento havia sido surpreendida, a 28 de Abril, por um ofício da Direcção Regional de Educação de Lisboa em que se dava conta de que o mesmo havia sido extinto através de um despacho do secretário de Estado da Educação, assinado a 23 de Março. Estar na hipotética rota do TGV sentenciara a decisão de encerrar uma escola concebida com capacidade para acolher um milhar de estudantes.
O complexo da Afonso Domingues foi inaugurado a 1 de Outubro de 1956, inserido num recinto com cerca de dois hectares, situado num local conhecido como Quinta das Veigas, em Marvila, e incluía, além das salas de aula, oficinas e laboratórios, campos de jogos e zonas arborizadas. A decisão de o construir fora tomada pela administração central, oito anos antes, e visava relocalizar com condições adequadas uma instituição especializada em cursos técnico-profissionais das áreas de desenho, electricidade, electrónica, química e mecânica e que, à época, funcionava no Palácio dos Marqueses de Niza, junto ao Convento da Madre de Deus. O escritor José Saramago frequentou a instituição entre 1935 e 1940, onde estudou serralharia mecânica. A Escola de Desenho Industrial Afonso Domingues havia sido fundada em 1884, na Calçada do Grilo, passando três anos depois para a Calçada da Cruz de Pedra. Nas suas derradeiras instalações, passou a chamar-se “Escola Industrial” e depois “Secundária”, ministrando nos últimos anos os denominados Cursos de Educação e Formação (CEF).
Certo é que, encerradas as portas, não tardou até que se começassem a sentir os efeitos das acções de vandalismo. Ainda antes de o governo liderado por Pedro Passos Coelho decidir travar o projecto da TTT, em 2012, já existia um registo de roubos e actos de vandalismo continuados, pelo menos desde meados do ano anterior. O assunto passou, por isso, a ser motivo de notícias relativamente frequentes, que apontavam o desbaratar de um bem público – que até há pouco tempo cumpria as funções para que havia sido concebido e, mais que isso, havia conhecido melhoramentos. Em Fevereiro de 2013, no âmbito de uma dessa reportagens, o Ministério da Educação garantia à RTP que estava completamente fora de questão reactivar a escola e acrescentava que, naquele momento, estava a ser estudada a utilização das instalações do estabelecimento “por uma entidade pública.”
Certo é que, passados oito anos sobre o encerramento, nada aconteceu nessa matéria. Ao invés, perpetuou-se a indefinição sobre o que fazer com o equipamento, ao mesmo tempo que se adensava a degradação no recinto da escola e no seu entorno, onde se têm vindo a acumular detritos de todo o género. Nas últimos meses – e até à operação de limpeza realizada na manhã desta quinta-feira (29 de Novembro) – , olhando em redor, tem sido possível observar detritos de todo o género, sejam restos de obras, mobiliário, electrodomésticos, lixo diverso e até carcaças de duas viaturas dos Bombeiros Voluntários do Beato. Algo que tem estado a deixar incomodados os residentes das redondezas. “Custa ver o que se passa com esta escola. Entra aqui quem quer. Roubam e destroem sem que ninguém os impeça. Os miúdos da Verney vêm para aí partir coisas e fumar drogas”, diz a O Corvo uma senhora reformada, preferindo manter anonimato, enquanto passeia o cão nas imediações, a meio da tarde de um dia de semana. Refere-se à Escola Luís António Verney, situada umas dezenas de metros no Bairro da Madre Deus, onde ela vive.
Também Eduardo Silva, residente na Estrada de Marvila, testemunhou o rápido agonizar do estabelecimento e das suas cercanias. “Desde que fecharam portas por causa da terceira travessia, toda aquela zona entrou num processo de decadência muito rápido. É pena, pois a escola tinha sido equipada, pouco antes, com do bom e do melhor”, comenta, salientando que, dada a ausência de medidas pelas entidades, a conversão do local em lixeira não tardou. Num ciclo vicioso, a insalubridade do entorno agudizou o processo de degradação no interior. “Já liguei pelo menos três vezes aos bombeiros, avisando para a realização de fogueiras no recinto da escola”, conta Eduardo Silva, que testemunhou a operação de limpeza desta quinta-feira, sem se aperceber, porém, se a mesma era realizada pela CML ou por alguma das juntas de freguesia. “Noutras ocasiões, tinham lá ido, mas não levaram o lixo, apenas empurravam para os lados”. O processo de deposição de entulho, todavia, “é constante”, assegura.
João da Gata, morador na Calçada do Duque de Lafões, a algumas dezenas de metros da escola, garante também assistir, desconsolado, à deposição frequente dos mais variados desperdícios. “Já lá vi de tudo. Os bombeiros do Beato chegaram a ter mais carros velhos ali depositados. O que vale é que existe um senhor que vai lá aproveitar os restos de metal, acabando por fazer uma limpeza”, conta. Mas todo aquele entulho que ali se encontra é, na sua maioria, proveniente das muitas obras particulares que andam agora a ser feitas no Beato e em Marvila e “que não têm licenciamento”, assegura João, confessando não perceber como é possível ainda existir quem cultive os terrenos mesmo ao lado. O perigo de contaminação “é grande, pois existem plásticos, óleos, esponjas e outros materiais espalhados por ali”. Tal cenário, dada a insalubridade e o relativo isolamento do sítio, acaba por dar poucas garantias de segurança. Sentimento agravado pela presença frequente de grupos de praticantes de paintball, envergando fardamento militar e armas da modalidade. “Quem é apanhado desprevenido assusta-se. Parecem uma milícia”.
Por tudo isto, a situação da extinta Escola Secundária Afonso Domingues está a deixar preocupados os presidentes da juntas de freguesia de Marvila e do Beato. Ambos pedem a rápida reabilitação do antigo complexo escolar e a sua reutilização como equipamento colectivo. “Já por diversas vezes falámos com a câmara sobre o destino a dar à escola. O espaço deve ser recuperado. Houve negociações para instalar ali uma unidade afecta à segurança, seja para a PSP ou a Polícia Municipal, ou à protecção civil, mas não há nada de concreto”, diz a O Corvo José António Videira (PS), presidente da Junta de Freguesia de Marvila. O autarca refere estar também a par das intenções da câmara municipal de construir nos terrenos em frente um eixo viário que permitiria “terminar com o estrangulamento naquela zona”, criando um prolongamento da Rua João César Monteiro.
O autarca diz ainda que veria com bons olhos que a Afonso Domingues fosse ocupada por um equipamento cultural, do qual a zona se sente carenciada. “No fundo, queríamos ali algo que valorizasse a freguesia”, considera. José António Videira afirma ainda que apenas poderá responder pela limpeza dos terrenos do lado nascente da Rua Miguel Oliveira, sendo que do outro lado tal deverá ser assegurado pela Junta do Beato, por essa ser parte integrante do território dessa freguesia. Uma visão, todavia, não coincidente com a manifestada a O Corvo pelo presidente da autarquia do Beato, Silvino Correia (PS), que entende ser o lado poente do arruamento ainda integrante da freguesia de Marvila. “A fronteira da freguesia não é naquela rua, é um pouco mais à frente. Os dois lados da estrada, frente à escola, pertencem a Marvila”, assevera.
Em tudo o resto, porém, os autarcas concordam. “É claro que temos uma grande preocupação com o estado em que aquilo está. Acaba por ser uma má vizinhança e por contaminar com mau ambiente toda aquela área. Isto causa-nos transtorno. Temos insistido com a Câmara de Lisboa para que se arranje uma solução para este caso”, diz Silvino Correia, assegurando já ter “falado uma ou duas vezes com pessoas da câmara sobre isto”. O autarca confirma, aliás, as sondagens institucionais feita pela edilidade para que a Afonso Domingues pudesse ser convertida em esquadra da polícia. Mas a ideia terá caído, explica, porque “o comando metropolitano de Lisboa da PSP não estará interessado em ocupar aquele edifício”. Haverá, porém, outras soluções em vista. “Pelo que sei, têm estado a avaliar a possibilidade de ali instalar o comando da Protecção Civil Municipal”, explica, referindo ao serviço que, ainda há pouco tempo, em 2017, se mudou para Monsanto.
O presidente da Junta do Beato gosta da proposta do Fórum Cidadania Lx de conversão num parque verde urbano dos terrenos municipais adjacentes à escola, e agora utilizados como vazadouro. Mas encara com algum cepticismo a sua realização. “Parece-nos uma boa ideia. O mais difícil, no entanto, será convencer a câmara”, afirma.
O Corvo questionou tanto o Ministério da Educação como a Câmara Municipal de Lisboa sobre este assunto, mas não recebeu respostas às questões colocadas, até ao momento da publicação deste artigo.