Posse administrativa de prédios a demolir para se fazer mesquita aconteceu mesmo

REPORTAGEM


Samuel Alemão

Texto

URBANISMO

Santa Maria Maior

24 Maio, 2016

Um par de minutos antes da hora marcada, pelas 16h desta segunda-feira (23 de maio), António Barroso fazia ouvir a sua indignação. “É inacreditável a forma como a Câmara Municipal de Lisboa está a lidar com este processo. Recuso-me a assistir a isto”, disse à funcionária da autarquia que se preparava para ler a declaração de posse administrativa dos seus três imóveis, antes de fechar a porta e entrar no número 151 da Rua do Benformoso, onde reside. O que se temia há algum tempo cumpriu-se ontem. A Câmara de Lisboa (CML) é formalmente dona dos imóveis que até aqui detidos por António Barroso, que vai demolir para construir a nova mesquita da comunidade do Bangladesh.

Tentando conter o mais que podia as emoções, o expropriado recusou-se a presenciar o acto formal, liderado por uma representante da Direcção Municipal de Gestão Patrimonial da CML, devidamente acompanhado por dois agentes da polícia municipal, que o notificou a ele e aos seus inquilinos da posse administrativa. A cada um deles foi entregue cópia de uma declaração em que se diz que, “apesar da caducidade imediata dos contratos de arrendamento, a CML autoriza os arrendatários comerciais a permanecer nos espaços até à notificação para a sua libertação de pessoas e bens, com uma antecedência não inferior a 20 dias, caso, entretanto, não venha a ocorrer a expropriação amigável, situação em que a entrega ocorrerá mais cedo”.

A funcionária do município foi notificando os inquilinos de António Barroso – como Afzal Mohammed, dono de uma agência de viagens situada no 151-A ou um empresário bangladeshi dono de um restaurante situado no 149 – das contingências legais a que agora estariam sujeitos, ante o aparato suscitado pela presença de alguns jornalistas, entre eles uma equipa de reportagem da RTP, e dos polícias. O que causava o espanto dos transeuntes e automobilistas que passavam na estreita artéria comercial paralela à Rua da Palma, e que faz a ligação entre o Intendente e o Martim Moniz. Tânia Mendes, a advogada do senhorio agora expropriado, ouviu e recebeu uma cópia da declaração.

Depois de Afzal Mohammed assinar, à porta da minúscula sala onde funciona a sua agência de viagens, o documento dando conta que tomara conhecimento da notificação – no último ponto da qual se lê: “declara-se, ainda, que a CML autoriza o recebimento das rendas dos espaços comerciais pelos actuais senhorios, até à data da sua libertação” -, a funcionária municipal e os agentes policiais que a acompanhavam entraram no restaurante ao lado. A notificação do dono do estabelecimento foi feita ali mesmo, na sala onde vários clientes, todos eles homens, ainda almoçavam. Situação que causava algum espanto aos comensais, até porque um dos polícias manteve a pose rígida de vigilância, no interior, junto à porta de entrada.

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Depois de cumprida tal formalidade, e após ter colocado uma faixa de plástico negra pendendo da varanda do primeiro andar, António Barroso desceu e, mais uma vez, disse aos jornalistas o quão revoltado se encontra. “Isto que acabaram de assistir é uma intervenção que nunca deveria existir num país com leis. É daquelas coisas que nunca imaginei assistir, honestamente. Há muita coisa neste processo que não faz sentido, isto não se faz. No meio disto tudo, alguém há de ter bom senso”, dizia o desconsolado senhorio, queixando-se da alegada “falta de diálogo” da CML para resolver esta situação de outra forma. “Sempre estive disposto a negociar”, afirmou, depois de ter qualificado de “ridícula” a indemnização de 531 mil euros que a autarquia lhe quer dar pela expropriação das suas parcelas. António pede cerca de dois milhões de euros.

O até agora dono dos prédios diz-se disposto a resistir. “Têm que me tirar daqui à força, que eu não saio”, diz, prometendo resistir “todas as formas, até ao fim”. António Barroso relembrou ontem que investiu “muito dinheiro” na reabilitação daqueles edifícios, quando os adquiriu há cerca de uma década, quando ainda não se suspeitava ainda da dinâmica que viria a ser gerada pelo processo de reabilitação urbana da zona, promovido pela CML, nos últimos anos. “A Mouraria está em alta, está na moda, as pessoas querem vir morar para aqui. Por isso, estes imóveis valem muito mais do que eles me querem pagar. Além disso, a câmara fez tantas exigências de preservação patrimonial, não meteu aqui um tostão e, agora, vai deitar por terra o que eu reconstruí?”, questionava.

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Ao seu lado, a advogada Tânia Mendes reconhecia que o “acto formal” ontem decorrido é um passo mais a caminho da aparente inevitabilidade do despejo do seu cliente e dos inquilinos. “A partir destes momento, o Sr. Barroso, apesar de ter ainda as propriedades em seu nome, não as pode vender, ceder ou arrendar. Tudo isto abre o caminho para que seja feita a tomada coerciva dos imóveis, que pode acontecer a qualquer momento”, admitiu. A advogada relembra que foi interposta uma providência cautelar para tentar suspender o processo expropriativo – a qual ainda não foi avaliada pelo tribunal – e uma acção junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, para requerer a nulidade do processo administrativo de utilidade pública, que demorará muito mais tempo. E não afasta a possibilidade do recurso ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

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