O “prédio mistério” de um grande projecto imobiliário no coração da Mouraria

REPORTAGEM
Samuel Alemão

Texto

URBANISMO

Santa Maria Maior

15 Julho, 2016


Os rumores de que o novo condomínio habitacional situado na zona das Olarias, na Mouraria, poderá acolher um terceiro prédio construído de raiz, além de dois já existentes, está a causar incómodo. Os donos e inquilinos dos imóveis vizinhos queixam-se que, a ser edificado, o prédio tapará as vistas e desvalorizará as suas propriedades. Se o mesmo avançar, prometem não ficar parados. A construtora, todavia, diz que não estão previstas outras edificações. Mas existem brochuras promocionais do empreendimento imobiliário – o mesmo onde, há meses, foi descoberto um grande cemitério medieval – em que se mostram imagens do tal prédio.

Quando, há uns meses, começaram as obras de construção do novo empreendimento imobiliário “Jardim dos Lagares”, junto ao Largo das Olarias, na Mouraria, os moradores acompanharam com atenção todos as movimentações de máquinas e camiões. O projecto habitacional, também comercializado como “Amouraria” e pertencente ao grupo luso-francês Libertas, envolve a recuperação de dois velhos edifícios do século XIX para os transformar em modernos apartamentos, tendo também previsto um jardim com piscina sobrelevado à cota da Rua dos Lagares, para uso exclusivo dos condóminos. Haverá também lugar para spa, sala de fitness e parqueamento.

Trata-se de um investimento bem-vindo pela generalidade dos residentes de uma área da cidade há muito entregue à mais profunda degradação e que dá continuidade à grande operação de regeneração urbana desencadeada na Mouraria e no Intendente, pela Câmara Municipal de Lisboa (CML), a partir de 2010. Ninguém tem saudades do cenário de decadência urbana generalizada, com prédios a caírem em toda a envolvente, constatou O Corvo em conversa com diversos membros da comunidade. Há, porém, uma sombra a pairar sobre o projecto imobiliário: a eventual construção de um terceiro prédio, na Calçada do Monte, o qual viria “cortar as vistas” e“alterar as condições de iluminação natural”.

“Existem rumores que vão construir um terceiro prédio, que nunca existiu ali, para além dos que já existem. Não temos a confirmação disto, mas corre esta informação por aqui”, diz Álvaro Pinheiro, o dono de um prédio situado no enfiamento da Rua dos Lagares com a Calçada do Monte, comprado há dez anos e, entretanto, recuperado. “Se isso acontecer, vai tapar as vistas desafogadas que tinha e desvalorizar o meu prédio, como é óbvio”, afirma o proprietário. Por isso, requereu, juntamente com outros moradores, uma reunião com os responsáveis pela empresa promotora dos Jardins da Mouraria, na qual os mesmos lhe terão dito que “iriam cumprir o projecto”.

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O prédio de que se fala poderia vir a ser construído aqui, na Calçada do Monte.

Ou seja, o tal terceiro edifício confinante com a Calçada do Monte não será construído, de acordo com referidas garantias. Algo que Álvaro Pinheiro e outros vizinhos querem ver para acreditar. Isto porque as informações que correm de que haverá lugar à construção do tal prédio são insistentes e alguns moradores atribuem-nas aos operários que trabalham no empreendimento. Por causa disso, Álvaro decidiu, há pouco tempo, e antes de ter a reunião com os promotores do condomínio, ir aos serviços de urbanismo da CML e pediu para ver o projecto. Lá, não constava qualquer autorização para se fazer o prédio. “Espero mesmo que não o façam, senão não ficaremos parados”, diz.

O mesmo diz Ilda Sousa, a filha dos proprietários do restaurante o Cantinho do Custódio, que critica não apenas a possível construção do prédio – mesmo em frente ao imóvel da família, no rés-do-chão do qual funciona o estabelecimento – como a altura do muro que estão a erguer, considerada excessiva. “Eles estão a fazer isto muito alto, vão roubar-nos a claridade e as vistas que aqui temos. Uma rua que sempre teve sol vai ficar escura e feia”, diz Ilda, preocupada com os efeitos que tal pode ter no valor do seu prédio. Na porta ao lado, Rosa Guedes, 81 anos, também está apreensiva. “Não quero ficar aqui metida numa gaveta”, diz.

Mas, afinal, estamos perante um rumor ou uma informação que poderá ter, de facto, fundamento? O Corvo questionou, há cerca de três semanas, o Grupo Libertas sobre o assunto, enviando duas perguntas por escrito: “O projecto do referido empreendimento, além dos dois imóveis pré-existentes e do planeado jardim com piscina, comporta também um novo edifício, construído de raiz e confinante com a Calçada do Monte?” e “Qual a altura do muro confinante com a Rua dos Lagares que está ali a ser erguido e qual a altura do muro que lá existia anteriormente?

As respostas chegaram esta semana, através de um email de Pascal Gonçalves, administrador do grupo Libertas, no qual se faz questão de salientar que o “empreendimento é da Sustentoasis S.A., que pertence a investidores portugueses e franceses”. A Libertas, refere-se no email, responde na qualidade de “gestora técnica da construção do projeto”. “Os projectos da Sustentoásis são sempre antecedidos por um rigoroso estudo histórico-arqueológico desenvolvido por uma equipa de especialistas que conhecem profundamente a História de Lisboa e, portanto, auxiliam o trabalho dos arquitectos e engenheiros na promoção da homenagem à traça arquitectónica local”, explica-se.

Em relação aos elementos construtivos que tanta suspeição estão a levantar na envolvente, o administrador explica que “além do referido jardim que reflecte a pré-existência, erguido sobre o parque de estacionamento (que não afectará a paisagem), o projeto inclui uma Cozinha Comunitária pensada e projetada juntamente com o Município, a fim de responder às necessidades da população local”. “O muro que está a ser erguido terá uma altura muito próxima do já existente, garantindo a resistência e altura necessárias para a contenção de terras, estabilidade e segurança das construções”, diz, antes de garantir que “não estão previstas outras edificações”.

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O “prédio moderno” é mostrado no lado esquerdo desta imagem promocional.

No entanto, e apesar destas garantias, o certo é que tem sido divulgado material promocional ao empreendimento “Jardim dos Lagares/AMouraria” em que é possível observar imagens projectando o aspecto final do mesmo, no qual se evidencia a existência do tal novo prédio, junto à Calçada do Monte e mesmo ao lado de um dos imóveis pré-existentes que está a ser reabilitado. Mais: na segunda página de uma brochura disponível online, é referido que “Amouraria é composta por dois edifícios do século XIX renovados e um moderno, no total de 19 apartamentos, tendo como característica principal ser o único condomínio privado com um grande jardim, piscina e parqueamento, no centro histórico de Lisboa”.

Esse é o descritivo que consta da brochura em português disponível através de um ficheiro PDF acessível através do sítio do grupo imobiliário sul-africano Pam Golding Properties. Já na descrição feita, em inglês, no sítio Porta da Frente/Christie’s, o cenário é outro, já que se anuncia que o empreendimento “será composto de dois edifício do século XVIII renovados com arquitectura contemporânea e que serão construídos em breve”. Nos vários sítios internacionais dedicados ao imobiliário onde o projecto está a ser promovido, as imagens disponibilizadas sobre o mesmo mostram sempre o tal terceiro prédio do empreendimento.

Mas o mais estranho é que no sítio Casa em Portugal, uma empresa criada pelo grupo Libertas para promover o seu portfólio imobiliário junto do mercado internacional, a informação sobre o Jardim dos Lagares deixou de estar acessível, há poucos dias. A mesma estava disponível quando O Corvo endereçou as questões ao grupo Libertas. Nesta quinta-feira (14 de julho), tal informação continuava inacessível.

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O Corvo enviou, a 6 de Junho, à Câmara Municipal de Lisboa, as mesmas duas questões endereçadas ao Grupo Libertas, mas não obteve resposta às dúvidas levantadas, até à publicação deste artigo, apesar da insistência.

O empreendimento Jardim dos Lagares é o epicentro de um recente achado arqueológico de enorme relevo, constituído por um grande cemitério medieval de grandes dimensões – conforme foi, aliás, noticiado pelo Corvo.

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