Depois de mais de um ano e meio de obras, e de dúvidas sobre a evolução das mesmas, o pior receio dos moradores da zona das Olarias, na Mouraria, parece confirmar-se. O condomínio “AMouraria”, que está a ser construído, desde 2015, no local de um antigo palacete do século XIX, situado entre o Largo das Olarias e o Jardim da Cerca da Graça, deverá contemplar um terceiro edifício de arquitectura contemporânea, a edificar em parte do espaço do antigo jardim dessa propriedade, situada no enfiamento entre a Rua dos Lagares e a Calçada do Monte. Isto apesar de a sua construção, alega a Divisão de Projectos e Edifícios da Câmara Municipal de Lisboa, chocar com a suposta reserva daquele espaço para uma área verde.

 

É a confirmação de um cenário que tem sido motivo de conversas entre os moradores e fazia já parte das campanhas publicitárias para a comercialização do condomínio – promovido pela empresa luso-francesa Sustentoasis SA, ligada ao grupo Libertas -, quando ainda nem sequer existia autorização camarária para construir esse prédio. Mesmo um abaixo-assinado dos moradores foi insuficiente contra o avanço do projecto. Apesar das garantias em sentido contrário, dadas a O Corvo, há um ano, pelos donos do empreendimento, será mesmo construído o tal prédio, baptizado como “Jardim dos Lagares”. Isto apesar de os residentes o considerarem lesivo dos seus interesses, devido ao impacto visual e à alegada redução da exposição solar das suas casas.

 

O edifício nascerá contra a vontade da Divisão de Projectos e Edifícios da Câmara Municipal de Lisboa, num local que, argumentam os seus responsáveis, deveria estar reservado a permanecer como “espaço verde de recreio e produção a consolidar”, de acordo com o Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Mouraria (PUNHM). Tanto que vetaram a sua construção, por “não existir enquadramento regulamentar”. Um indeferimento contrariado, porém, pelo director de Departamento de Projectos Estruturantes, que alega ser “um lapso material” a sua caracterização como “zona verde”. Razão pela qual o prédio recebeu luz verde da Direcção Municipal de Urbanismo e do vereador Manuel Salgado.

 

O empreendimento em causa, AMouraria, compreende a reabilitação de dois velhos edifícios do século XIX – o tal palacete, situado no Largo das Olarias, e um prédio na Calçada do Monte – e ainda a construção do referido terceiro edifício (“Jardim das Olarias”) para os transformar em “19 modernos apartamentos”. Quando o projecto estiver terminado, encontrar-se-á dotado de um jardim com piscina, sobrelevado à cota da Rua dos Lagares, para uso exclusivo dos condóminos. Haverá também lugar para spa, sala de fitness e, construído sob a piscina e o espaço verde circundante, um parqueamento para 71 automóveis – ao lado do qual surgirá também um espaço comunitário. A brochura promocional garante que este será o “único condomínio privado com um grande jardim, piscina e parqueamento, no centro histórico de Lisboa”.

 

 

Ora, a referida piscina e a sua zona envolvente, bem como o parque subterrâneo que surgirá sob essa área, foram construídos naquilo que era o logradouro do palacete. No espaço sobejante, no enfiamento entre a Calçada do Monte e a Rua dos Lagares, os promotores imobiliários vislumbraram, desde o início, uma boa oportunidade para construir o mencionado prédio, comercializado como “Jardim dos Lagares”, e assim aumentar as possibilidades de valorização do empreendimento. Por isso, optou-se logo no início do processo por uma operação de destaque de parcela, permitindo a sua autonomização cadastral em relação ao conjunto. A intenção inicial foi, todavia, chumbada pelos serviços da CML, em 2015, por chocar com as restrições impostas pelo já referido Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Mouraria (PUNHM). Avançaram, apesar de tudo, todas as outras obras. Mas a pretensão original manteve-se, percebe-se agora.

 

Mesmo que os trabalhos no terreno, durante o ano passado, apenas deixassem perceber a operação de reabilitação dos dois prédios do século XIX e os trabalhos de construção da garagem, sobre a qual ficará a piscina, os moradores da zona ouviam da boca dos operários que o terceiro edifício era mesmo para erguer. Uma pretensão confirmada, já no final do ano passado, pela entrada nos serviços camarários de um pedido de licenciamento para a alteração do projecto inicial durante a sua execução – uma prática relativamente comum em projectos imobiliários desta envergadura.

 

 

O prédio “Jardim dos Lagares” – sob o qual se situará o tal espaço social, a ceder à Cozinha Comunitária da Mouraria – é avaliado na memória descritiva elaborada pelo autor do projecto, o arquitecto José Mateus, como exemplo de “contemporaneidade, através de um reflexão sobre aqueles que são alguns dos aspectos fundamentais da arquitectura existente no local” e qualificado como “sóbrio”. O imóvel terá uma altura de cerca de 13,5 metros, correspondente a quatro pisos acima da soleira – menos dois do que o inscrito no projecto inicial, chumbado, há dois anos, devido, entre outros motivos, ao incumprimento das regras do PUNHM. A nova versão não colheu, no entanto, o parecer favorável da Divisão de Projectos e Edifícios dos serviços de urbanismo da Câmara de Lisboa.

 

Num parecer de março passado, a que O Corvo teve acesso, o técnico responsável propõe o indeferimento do prédio por considerar “não existir enquadramento regulamentar para a pretensão em análise”, reiterando-se o entendimento que justificou a decisão inicial. Ou seja, o sítio onde se vai construir o prédio será, de acordo com a sua leitura do PUNHM, uma zona destinada a manter a sua funcionalidade área verde ou de “logradouro/vazio urbano”. “Este terreno, mesmo acolhendo novas ocupações com usos de equipamento e parque de estacionamento, não perde o seu carácter de espaço vazio, não sendo prevista a sua ocupação com nova construção destinada a habitação em continuidade de frente de rua, com definição de novo logradouro”, lê-se no parecer, que mereceu a concordância do chefe de divisão.

 

Opinião contrariada pelo director do Departamento de Projectos Estruturantes, que, a 15 de maio, faz uma interpretação distinta do mesmo PUNHM. O responsável considera que a “extensão do espaço verde a esta parcela se tratou de um lapso material, uma vez que se pretendia transpor o desenho do jardim da cerca do Convento da Graça”. Por isso, e porque “o projecto de arquitectura se ajustou à envolvente construída, apresenta uma volumetria conforme as regras da altura média das fachadas, não interfere com o sistema de vista (…) e constitui um contributo contemporâneo qualificado para a regeneração urbana do bairro e da cidade”, deu o seu visto positivo – que mereceu a provação final de Manuel Salgado, a 6 de junho.

 

De nada valeu o abaixo-assinado, entregue em abril passado, por centena e meia de moradores da Mouraria. Nele se considera que o prédio projectado “viola o PUNHM, que determina que o local onde se pretende construir o prédio é destinado exclusivamente a criação de um espaço cultural recreativo e Zona Verde (Jardim público)”, o que, alega-se, “contraria a lógica de usufruto público” subjacente ao plano de urbanização do bairro.“O edifício de habitação que a Sustentoasis S.A pretende construir poderia comprometer não só o acesso público da população a um espaço verde mas também o sistema de vistas dos prédios vizinhos”, consideram os residentes.

 

O Corvo questionou a CML, na passada quinta-feira (13 de julho), sobre esta assunto. “É comum um parecer negativo da Divisão de Projectos de Edifícios, validado pelo chefe de divisão, ser ‘chumbado’ pelos superiores hierárquicos?”, perguntou-se. A resposta não chegou, contudo, até ao momento da publicação deste artigo.

 

Texto: Samuel Alemão

 

  • Vera Marreiros
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    Na presente conjuntura, principalmente em Lisboa, vale tudo desde que os €€€ entrem em acção.

  • Responder

    $$$$$$$$$$$$$$$$$$$

  • Francisco Eustáquio
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    Criminoso!

  • Paulo Fonseca
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    O vereador Manuel Salgado só não está na reforma porque tem muito a ganhar na Câmara. Desde que o Costa saiu que meteu as garras de fora e aparece em todas. Parece ser o dono de Lisboa!

  • Bruno Palma
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    Quando a CML e a Junta de Freguesia de São Vicente alteraram o projecto de requalificação do Largo da Graça, substituindo árvores por um coreto (mamarracho) de cimento e tijolo, com que moral é que vão exigir aos particulares que respeitem as regras?

  • Sergio Ferreira Silva
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    turismo tem custos

  • Alexandre Rechestre
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    Eu moro aí, há 3 anos a zona das olarias e R.Lagares parecia Saravejo depois de bombardeada, se a construção for bem feita e respeitanto a traça da zona é sempre bem vinda..

  • Ana Gomes
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    Assim vai a CML é o seu responsável máximo, quantos mais cifrões entrarem na CML menos dinheiro eles gastam na construção da Mesquita!

  • Paulo Ramos
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    Pagou as pessoas certas

  • Catarina Amorim
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    “Opinião contrariada pelo director do Departamento de Projectos Estruturantes, que, a 15 de maio, faz uma interpretação distinta do mesmo PUNHM”
    A “interpretação” continua a ser o principal problema do processo de planeamento em Portugal…

  • modesto carvalho
    Responder

    Gostei especialmente da parte … ” Um indeferimento contrariado … pelo director de Departamento de Projectos Estruturantes, que alega ser “um lapso material” a sua caracterização como “zona verde” “

  • TONICO
    Responder

    ALGUEM ENCHE OS BOLSOS

  • Vasco
    Responder

    É óbvio que esse gaveto precisa de um edifício de remate. A empena cega não está lá por acaso.

  • Catarina de Macedo
    Responder

    Porque é que o “contributo urbano” que defense o vereador Manuel Salgado, tem de ser de todas as zonas passíveis de novos projectos de construção na zona de Lisboa, precisamente no centro histórico da cidade?

    Acaso não percebem que centro histórico só há um?

    E que para ser considerado histórico tem de ser constituído por imóveis de traça antiga?

    Porque é que os arquitectos que gostam de brincar à contemporaneidade não vão fazer esses projectos nas zonas modernas e mais recentes da cidade e teimam sempre em fazê-los nas zonas históricas?

    Gostam de estragar?

    Têm alguma coisa contra a traça antiga nos imóveis?

    Querem variedade?

    Então porque não fazem imóveis de traça antiga nas zonas modernas?

    Têm de tornar ilegal o recurso a edifícios modernos nos espaços históricos. O faz desses espaços históricos, é a presença de edifícios que sejam pelo menos do século passado. Se não querem ter espaços históricos, se têm nojo, como parecem ter visto este desrespeito constante que demonstram, do espaço histórico então que o digam abertamente e não tentem arranjar desculpas esfarrapadas baseadas em falsas concepções estéticas e artísticas que só na cabeça deles existem. Os imóveis de traça antiga são muito mais bonitos que os de traça moderna, não procurem impingir esse gosto às pessoas só porque não conseguem fazer projectos com beleza. O que atrai os turistas em Lisboa é a parte histórica não estes abortos contemporâneos, estilo Museu Nacional dos Coches, MAAT’s e afins. Muito menos quanto esses trambolhos são utilizados para habitação. Querem prédios modernos então façam-nos onde é suposto. Não se pode ter tudo. E não se deve ter prédios modernos numa zona que é histórica. Ponto final.

  • datravessa
    Responder

    Tal como noticiava O Corvo há um ano, ebemm http://ocorvo.pt/o-predio-misterio-de-um-grande-projecto-imobiliario-no-coracao-da-mouraria/ ! Muito bem… entretanto, o senhor Álvaro Pinheiro vendeu tanbém o prédio de lado (Calçada do Monte) à Sustentoasis, que comprou igualmente os quatro da enfiada na Rua dos Lagares, neste momento emparedados, com excepção de um pequeno edifício pertencente à Santa Casa da Misericórdia e (ainda) habitado. Na mesma rua e antes do jardim, apenas mais um prédio é habitado, o número 27, cujos habitantes lutam neste momento contra o despejo coletivo. Mouraria a quem a habita!

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