Dono de prédios que cairão para erguer mesquita diz-se enganado pela câmara

REPORTAGEM
Samuel Alemão

Texto

URBANISMO

Santa Maria Maior

6 Novembro, 2015


Em 2005, o comerciante António Barroso comprou um conjunto de prédios degradados na Rua do Benformoso. Gastou o que tinha e endividou-se para reabilitar os edifícios situados numa zona em que, na altura, ninguém queria investir. Mas agora é surpreendido pelas notícias dando conta de que será expropriado. “Por um valor ridículo”, diz. Os imóveis serão demolidos para dar lugar à Praça da Mouraria e à nova mesquita do bairro, a financiar pela Câmara Municipal de Lisboa. Mas António ainda está aberto ao diálogo com a CML, antes de pensar avançar para os tribunais.

Tanto esforço para chegar a esta situação. As emoções quase tomam a melhor sobre António Barroso, 63 anos, enquanto rememora tudo por quanto já passou numa vida de trabalho duro. O comerciante da Rua do Benformoso tem uma enorme dificuldade em engolir a eminente expropriação e demolição dos dois prédios (compreendidos entre o 145 e o 151-B) comprados com imenso esforço, há uma década, já depois de ter passado por um outro processo de perda forçada de propriedade. A construção da Praça da Mouraria e da grande mesquita que servirá a comunidade islâmica do Bangladesh, financiada pela Câmara Municipal de Lisboa (CML), vem deitar tudo a perder.

“A obra ainda nem começou e já me está a dar prejuízo”, diz António, lamentando que um dos os seus arrendatários, um restaurante bangladeshi, tenha desistido de avançar com a ampliação das suas instalações, mal soube da aprovação – por unanimidade, na reunião camarária ocorrida a 28 de Outubro – da declaração de utilidade pública da expropriação, com carácter de urgência, dos direitos de propriedade de três prédios situados na Rua do Benformoso e ainda da utilidade pública da expropriação, também urgente, dos direitos de arrendamento de um prédio detido pela autarquia na Rua da Palma. Pior que tudo, diz o comerciante, “os valores propostos para indemnização são ridículos.”

O valor total de expropriação que a CML aprovou pagar ao conjunto dos donos dos imóveis compreendidos entre os números 141 a 151B da Rua do Benformoso, nos quais se inclui António Barroso, é de 762.175 € – enquanto a compensação pela expropriação dos direitos de arrendamento do edifício municipal da Rua da Palma (entre os números 248 a 264) ascende a 712.051 €. Ou seja, a compensação pela cessação do direito de arrendamento do espaço onde hoje funciona uma grande garagem vale quase tanto quanto a indemnização pelo fim do direito de propriedade de quatro prédios. Serão todos esses edifícios que virão abaixo para dar lugar um novo arruamento e ao templo islâmico, que custará 1,5 milhões de euros aos cofres da câmara.

O mais afectado pela operação será António Barroso, que tem muito a perder no conjunto compreendido entre o 145 e o 151B. É que, além de ver ameaçada a posse dos imóveis onde estão instalados o tal restaurante, mais uma agência de viagens e vários edifícios de habitação – tudo arrendamentos que deixará de receber e que são vitais para pagar as obrigações contraídas com a banca, para proceder à reabilitação dos imóveis -, vê-se agora na perspectiva de perder a casa onde mora com a mulher, desde 2009. Foram três anos de obras, muitas delas sem o seu real custo ser devidamente contabilizado, pois os trabalhos eram realizados por um familiar, que fez um “preço de amigo”. Isto para além do próprio esforço físico de António, que, durante muitos fins-de-semana, participou nas obras.

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O interior da casa recuperada por António e que será agora demolida.

“Os valores que nos propõem agora são uma ninharia. Nem chegam para cobrir todo o trabalho de recuperação total dos prédios, que me saiu do bolso, e nem estou a contabilizar a vida social que deixei de ter para levar isto por diante”, queixa-se António Barroso, lamentando ter ficado a saber que ia ser efetivamente expropriado “pelas notícias na internet”. “Não me disseram nada, o que acho inacreditável. Sabia que estavam a pensar neste projeto e até veio cá um senhor da câmara tirar umas fotografias, antes de se saber que queriam avançar para esta obra”, diz, antes de mostrar ao Corvo a última carta que recebeu da autarquia, há um par de anos.

Assinada por António Furtado, diretor do Departamento de Política de Solos e Valorização Patrimonial – estrutura dependente do vereador do Urbanismo, Manuel Salgado -, a missiva dá conta da efetiva necessidade de se avançar com a expropriação e demolição das propriedades de António Barroso, mas nunca fazendo referência a valores compensatórios. Foi enviada a 28 de Novembro de 2013. Antes disso, no final de Janeiro de 2012, o proprietário dos imóveis havia recebido uma outra carta do município, comunicando-lhe a intenção da CML em avançar com o referido projeto urbanístico e explicando-lhe que, uma vez que tal obra iria ser concretizada numa área que incluía o quarteirão por si detido, a mesma teria como consequência o seu despejo. António pensou que a edilidade voltaria a entrar em contacto com ele, apresentando-lhe uma proposta concreta. Mas, desde há dois anos, mais nada foi dito, diz.

Por isso, António Barroso e a mulher, Maria Luísa Barroso, também com 63 anos, sentem-se enganados e em choque. Têm dívidas ao banco e agora, numa idade em que julgavam poder começar a fazer planos de reforma, vêem-se na eminência de, numa assentada, perderem aquilo porque tanto lutaram. Incluindo a casa onde vivem. “É onde pretendo continuar a viver com a minha esposa”, frisa o empresário, antes de sublinhar que nada tem contra a comunidade islâmica, até porque são eles os seus arrendatários. O que quer ver clarificado, assegura, é se as pessoas da CML “olham só para os interesses deles e não para os dos seus cidadãos”. “Isto não tem que ser irreversível”, afirma António, privilegiando o diálogo com a autarquia em detrimento de uma possível ação judicial.

E avança mesmo com uma proposta. “O que está em causa são os valores ridículos. No entanto, o que me interessa aqui não é o dinheiro, mas sim ter a perspectiva de que vou manter as mesmas condições de habitabilidade e de rendimento que tenho tido. Não pretendo obstar a que o projeto seja realizado. Por isso, estou aberto a que a câmara me apresente, por exemplo, uma solução de permuta que seja diferente desta proposta. Um espaço que me garanta iguais condições de habitabilidade para mim e de manutenção das rendas que cobro, nesta zona”, afirma o comerciante, lembrando que a CML “tem muitos imóveis desocupados” na área.

A revolta de António Barroso e da mulher é ainda maior pelo facto de, quando compraram o conjunto de imóveis muito degradados, em 2005, lhes ter sido exigido pela autarquia, como manda a lei, a apreciação do direito de preferência – do qual a câmara acabou por prescindir. Concretizado o negócio, o casal investiu o que tinha e pediu o emprestado o restante para fazer as obras de reabilitação, incluindo ao banco. Os trabalhos custaram cerca de 350.000€ e a eles há que somar o valor pago por António e Maria Luísa na aquisição dos imóveis – um montante que os proprietários preferem não revelar. “Isto é muito desgastante a nível psicológico. Acho muito mal que a CML me queira agora despejar com uma situação que é muito má para mim”, diz.

Uma insatisfação que se estende aos dois comerciantes que são arrendatários de António. Para além do dono do restaurante de comida do Bangladesh – com quem O Corvo não conseguiu falar -, também Mahommed Afzal, moçambicano que é proprietário de uma pequena agência de viagens, a Moçambique Tour, no 149 da Rua do Benformoso, está preocupado com o futuro próximo. “Isto já não está nada fácil, por causa da crise, mas agora com esta situação não sei o que fazer. Se não me arranjarem uma localização alternativa, possivelmente, terei que emigrar”, diz o empresário muçulmano.

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