Assembleia Municipal de Lisboa aprova expropriações urgentes para se poder construir uma mesquita na Mouraria

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Samuel Alemão

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URBANISMO

Santa Maria Maior

18 Dezembro, 2015


Apesar de a votação final sem votos contra não o deixar adivinhar, a discussão em torno da aprovação da utilidade pública do instrumento legal que ajudará a fazer nascer uma mesquita foi tudo menos pacífica. Alguns deputados municipais do PSD dizem ter dúvidas sobre o processo urbanístico. E houve quem dissesse que um Estado laico não pode financiar templos. Afirmações e dúvidas que irritaram muito Fernando Medina e levaram um eleito do PS a falar em cedência a campanhas orquestradas pela extrema-direita nas redes sociais. A polémica promete continuar.

A discussão foi animada, e teve até alguns momentos mais tensos, mas a votação final da proposta foi quase unânime, contando apenas com a abstenção de meia-dúzia de deputados, cinco dos quais do PSD. Entre declarações ideológicas e discussões apaixonadas sobre a laicidade do Estado português e o carácter tolerante, cosmopolita e ecuménico da sua capital, a Assembleia Municipal de Lisboa (AML) aprovou, na tarde desta quinta-feira (17 de Dezembro), a declaração de utilidade pública de expropriação, com carácter urgente, de três prédios particulares “e de todos os direitos a eles inerentes”, por serem necessários à execução do projeto da Praça da Mouraria e da nova mesquita que nela será construída. A proposta havia já sido votada favoravelmente pelo executivo camarário, a 28 de Outubro.

O projecto, abrangido pelo Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Mouraria (PUNHM), deverá ainda voltar a ser apreciado pela assembleia no que concerne à autorização para a sua prossecução. O que foi agora aprovado foi o carácter urgente das expropriações que darão lugar a demolições de um edifício municipal na Rua da Palma e a três prédios particulares situados nas suas traseiras, na Rua do Benformoso. A nova praça nascerá nesse lugar, assegurando a ligação entre os dois arruamentos através de um espaço público que ficará sob o templo muçulmano a edificar. A construção da mesquita, destinada a servir sobretudo a numerosa comunidade do Bangladesh residente naquela área da cidade, será suportada pelo município de Lisboa e terá um custo estimado de 1,5 milhões de euros.

Ao contrário do sucedido na votação camarária, ocorrida em Outubro passado, em que a aprovação da proposta foi unânime – e pautada apenas por algumas reservas levantadas pelo vereador João Gonçalves Pereira (PSD), que ainda assim votou favoravelmente -, na discussão ocorrida na assembleia o tom foi claramente mais crispado. Chegou-se mesmo a falar da influência de ideias xenófobas e de extrema-direita, expressas sobretudo através das redes sociais, para tentar travar o avanço do projecto. As acusações partiram do deputado municipal José Leitão (PS), ex-alto comissário para a imigração e as minorias étnicas, que salientou as garantias de liberdade religiosa existentes em Portugal e a necessidade de reforçar o sentido multicultural.

“Lisboa é uma cidade global e não podemos esquecer que a comunidade muçulmana sempre este muito presente naquele local”, disse o eleito socialista, salientando o facto de o templo que deverá ser construído vir a suprir a forte necessidade, uma vez que o que existe naquela zona ser manifestamente pequeno para a procura crescente. “Este projecto cumpre o espírito ecuménico e contribui para o reforço da coesão na Mouraria e na cidade. Não podemos ceder à demagogia, à xenofobia e à intolerância expressa nas redes sociais”, afirmou José Leitão, que havia começado a sua intervenção no plenário afirmando-se surpreendido com as dúvidas expressas pelo PSD. “Antigamente, não tinham preconceitos em relação a estas questões”, disse.

Os social-democratas foram, de facto, e juntamente com o Movimento Partido da Terra (MPT), vozes abertamente discordantes face ao ambiente de aparente consenso em relação à utilidade da aprovação da utilidade da expropriação imediata para abrir caminho à construção da Praça da Mouraria e da mesquita. Pelo menos, esse foi a posição de dois dos mais importantes eleitos daquele partido – Vítor Gonçalves, líder a bancada, e Margarida Saavedra -, que acabaram por se abster na votação do documento juntamente com outros três colegas social-democratas, tendo os restante deputados laranjas votado a favor. E ambos, ex-vereadores, justificaram tal posição com dúvidas de cariz urbanístico.

Vítor Gonçalves disse que os deputados da 3ª comissão da AML, que acompanha os temas de urbanismo, “desconhecem o projecto urbanístico em causa”, pelo que não se poderiam pronunciar, favoravelmente ou o seu contrário, sobre o mesmo. Uma posição que foi, momentos mais tarde, reforçada pela declarações de Margarida Saavedra. “É totalmente inadmissível que se esteja a querer transformar numa questão religiosa aquilo que é uma questão urbanística. Enquanto não soubermos do que se trata o projecto não o votaremos. Na ignorância, não votamos, nunca o faremos”, afirmou a eleita do PSD, que se envolveu numa acesa troca de argumentos com o presidente da câmara, Fernando Medina.

O autarca, que já antes assumira que a construção da mesquita “é, inequivocamente, uma afirmação política de quem não se deixa levar pelo populismo e pelo medo”, contestou fortemente aqueles que põem dúvidas à edificação do templo. Medina começou por visar as dúvidas levantadas tanto por Vítor Gonçalves como pelo eleito do MPT Vasco Miguel Santos, que faziam lembrar a aparente contradição entre a laicidade do Estado português e o facto de a CML estar a abrir os cordões à bolsa para pagar um templo. O presidente da câmara lembrou o plenário que “se há coisa que distingue o estado laico é não descriminar nem beneficiar nenhuma fé religiosa”, acarinhando as diferenças. E elencou diversos exemplos de ajudas dadas pela autarquia, ao longo das últimas três décadas, a diferentes confissões, como os ismailis, os judeus, os hindus ou os católicos.

Como resposta, Margarida Saavedra voltou a sublinhar que as suas objecções são de cariz urbanístico e não outro. E elencou três. Fazendo referência à necessidade de os carros de bombeiros terem de passar no arruamento a surgir desnivelado sob a mesquita, disse que tal obrigaria a uma subida da cércea do edifício para uma altura total de “20 a 25 metros”. O que poderá causar uma desconformidade urbanística, face ao autorizado na zona. A eleita social democrata disse ainda que não estavam estudadas as condições de iluminação natural da futura Praça da Mouraria, que iria estar virada para Norte. E culminou a criticar o que considerou ser uma incógnita em relação à segurança dos acessos à mesquita. “Não estou disposta a votar numa aberração urbanística”, disse.

Tal elenco de dúvidas irritou visivelmente Fernando Medina. “Toda a gente sabe que gosto do debate político, mas uma coisa é certa: gosto de fazê-lo com frontalidade”, disse o presidente da autarquia, acusando a deputada municipal de estar a “arranjar alegadas dúvidas urbanísticas sobre o projecto, para não assumir verdadeiramente as razões porque votam contra a proposta”. Medina estava mesmo chateado e lembrou a Margarida Saavedra que ela e os restantes deputados não dispõem de competências para votar projectos urbanísticos. Tal fez com que Helena Roseta, presidente da AML, tivesse de atirar a Medina que se é verdade que a assembleia não tem poderes para o fazer, “tem certamente competências para fiscalizar a actuação da câmara”.

No meio do debate, Miguel Coelho (PS), o presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, apelou a que fizesse uma sessão de esclarecimento junto da população da área sobre este projecto, quando o mesmo estivesse pronto. Mas também pediu ao executivo camarário que reunisse com os proprietários dos prédios que vão ser expropriados. “Eles disseram-me que não têm informação sobre o que se vai passar”. Entre eles está, como noticiou no início de Novembro O Corvo, António Barroso, dono do conjunto compreendido entre o 145 e o 151B da Rua do Benformoso (na foto), que se diz enganado pela câmara. Ficou a saber pelos jornais que iria ser expropriado por um valor que considera irrisório face ao dinheiro investido na recuperação dos imóveis que agora serão demolidos.

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