Há um novo projecto que está a levar centenas de pessoas pela primeira vez ao Teatro Dona Maria II
REPORTAGEM
Sofia Cristino
Texto
Enric Vives Rubio e Ana Brígida
Fotografia
CULTURA
Cidade de Lisboa
7 Maio, 2019
Em pouco mais de meio ano, mais de 300 pessoas conheceram o Teatro Nacional Dona Maria II, através do projecto “Primeira Vez”. Muitas delas passaram, durante décadas, frente ao edifício, mas nunca lá entraram, por receio de “não ser para elas” e outras ideias pré-concebidas que, afinal, não faziam sentido, admitem agora. Quem nunca ali entrou para ver uma representação pode agora assistir a três peças pelo valor de seis euros, cada uma, fazer uma visita guiada pelo edifício do século XIX e conversar com a equipa artística dos espectáculos. Ainda há quem ache que para se ir ao teatro “é preciso muito dinheiro, ir muito bem vestido e ter uma capacidade intelectual acima da média”. As coordenadoras do projecto querem destruir esses mitos e dizer que o D. Maria “é um lugar para todos e todas”. “Sendo um teatro nacional, temos o direito e o dever de o ocupar”, explicam. O projecto poderá ainda ser alargado a outras disciplinas artísticas e até a jardins. O objectivo é democratizar o acesso à cultura e chegar a novos públicos.
Susete Santos, 66 anos, achava que o Teatro Nacional D. Maria II era “muito elitista, para um núcleo de pessoas muito fechado”. Para se entrar lá, pensava, era preciso ter “alguns conhecimentos específicos”. “Passei pelo teatro várias vezes, mas tinha vergonha de entrar, achava que o ambiente era muito exigente”, recorda. Hoje, estas ideias já estão “lá atrás, muito longe”, conta, com um tom jovial. É uma das 317 pessoas que, desde Outubro do ano passado, foram pela primeira vez ao D. Maria II assistir a uma peça de teatro ou visitar o edifício do século XIX, por intermédio do projecto “Primeira Vez”. A ideia é levar ali qualquer pessoa, com mais de 12 anos, que nunca tenha visitado o espaço ou assistido a uma peça naquele teatro. Chegar às pessoas que acham que o teatro “não é para elas”, democratizar o acesso à cultura e desmistificar algumas ideias são as grandes metas do Primeira Vez, financiado pelo programa BIP/ZIP, da Câmara Municipal de Lisboa (CML).
Durante muitos anos, Susete Santos não viu mais espectáculos e peças de teatro porque não sabia da existência deles. Mora do outro lado do rio Tejo, no Barreiro, mas tem uma forte ligação a Lisboa e foi na capital que passou a maior parte da sua vida. “Nasci pobre, trabalhei como operária até aos dezoito anos, quando fui trabalhar e estudar à noite, em Lisboa. Sempre procurei nos livros um refúgio. Já o teatro, achava, era para outras pessoas. Era uma ideia que tinha e obedecia a algo que, afinal, não existia”, reconhece, agora. Já dos bastidores do D. Maria, admite, tinha expectativas mais elevadas. “Adorei, mas esperava algo diferente, que os camarins fossem mais sofisticados, por exemplo”, diz. Hoje, já vai ao teatro tomar café, convidou amigas para peças a estrear brevemente e conta levar a neta no próximo mês. “Já me sinto ligada emocionalmente ao espaço, já passo lá muito tempo”, conta.
Ao fim de meio-século a viver na Baixa, Alzira Paixão entrou por fim no Dona Maria (foto: Enric Vives Rubio)
Muitos outros, que acabaram de conhecer o interior daquela sala de espectáculos, partilharam o mesmo sentimento de Susete durante décadas. Alzira Paixão vive há cinquenta anos na Rua Augusta, a poucas dezenas de metros do D. Maria II, e também achava que o teatro não era para ela. Através do “Primeira Vez”, estreou-se como espectadora do Nacional na peça “Teatro”, de Pascal Rambert. Já tinha visitado outros teatros da cidade, alguns no Parque Mayer e o Chapitô, mas, apesar de passar quase diariamente no D. Maria, nunca teve coragem de entrar.
A ideia de proporcionar esta experiência cultural a quem nunca a havia tido partiu de duas ex-colegas de universidade, Nádia Sales Grade, 40 anos, e Ana Pereira, 41 anos, profissionais nas áreas da comunicação e cultura. Depois de identificarem algumas zonas de Lisboa onde o acesso à cultura é menor – Mouraria e Alfama, na freguesia de Santa Maria Maior, os bairros de São José, Santa Marta e Campo Mártires da Pátria, e as freguesias de Marvila e Benfica –, tentaram captar pessoas através de juntas de freguesia, associações culturais, universidades seniores, grupos desportivos, o Corpo Nacional de Escutas, entre outros organismos.
Até agora, mais de metade dos participantes tem uma média etária de 60 anos. “Temos chegado com mais facilidade aos mais velhos, talvez por estarem mais disponíveis e organizados”, explica Ana Pereira. Mas o objectivo é chegar a qualquer pessoa, com mais de 12 anos, que nunca tenha pisado o interior de um dos teatros mais emblemáticos da capital.
Os participantes podem assistir a três peças, pelo “valor simbólico” de seis euros cada uma, fazer uma visita guiada e conversar com os actores e encenadores da peça. “A ideia é ser um encontro muito informal, no qual as pessoas não têm de se sentir obrigadas a dizer coisas bonitas. Estão muito à vontade para se expressarem livremente, dizerem o que gostaram e não gostaram”, explica. Nestas conversas com a equipa artística têm surgido os comentários mais inesperados. “Há quem se candidate quase a assistente de encenação e sugira alterações. É muito rico para a própria equipa, que não está habituada a este feedback tão rico e real”, conta Nádia.
Para esta primeira temporada, foram escolhidos quatro espectáculos – “Sopro”, com texto e encenação de Tiago Rodrigues, em exibição no passado mês de Janeiro; “Montanha russa”, um espectáculo de Miguel Fragata e Inês Barahona, no D. Maria no passado mês de Março; “Frei Luís de Sousa”, uma peça com encenação de Miguel Loureiro e texto original de Almeida Garrett, em cartaz nos passados meses de Março e Abril, e “A matança ritual de Gorge Mastromas”, com encenação de Tiago Guedes, texto de Dennis Kelly e protagonizada por Bruno Nogueira, a estrear no próximo dia 25 de Maio. As sessões desta última peça, através do “Primeira Vez”, estão marcadas para os próximos dias 26 de Maio, às 16h00, e 5 de Junho às 19h00. O projecto está pensado para o D. Maria II, por dois anos, mas as coordenadoras desta iniciativa pretendem alargá-lo a outras disciplinas artísticas, como cinema, dança, música, jardins e museus. “Queremos ainda fazer um clube do espectador, com encontros mensais para ver espectáculos e ter mais conversas. A ideia é criarmos o hábito de os participantes do projecto continuarem a ir ao teatro”, avança Ana.
As reacções de quem pisa o D. Maria II pela primeira vez têm sido muito diferentes, mas todos elogiam o “contacto personalizado”, que afasta medos e obstáculos psicológicos antigos. “Fazemos questão de acompanhar as pessoas e é isso que faz toda a diferença, porque, geralmente, não sentem esse acolhimento tão forte”, considera Nádia. Quanto às peças, “há pessoas que gostam mais e outras menos”. “Vai acontecer sempre, porque todos temos uma experiência para trás que nos ajuda a ler aquilo que se vê”, explica. “Acho que têm adorado a experiência completa, essencialmente, o percurso que fazem, desde o abrir a porta a falar com os actores e encenadores, porque não se trata apenas de uma ida ao teatro”, acrescenta.
As criadoras do “Primeira Vez” não querem “oferecer cultura”, mas facilitar o acesso por um preço abaixo do valor da tabela e desmistificar ideias feitas em relação ao teatro. “Os participantes ainda olham para o teatro como algo que não é para eles, mas para uma classe alta. Ainda existe a ideia de que para ir ao teatro é preciso muito dinheiro, ir muito bem vestido e uma capacidade intelectual acima da média. Queremos destruir esses mitos e dizer que é um lugar para todos e todas. Sendo um teatro nacional, temos o direito e o dever de o ocupar”, diz Ana Pereira.
As instituições culturais, explica ainda, “não têm tido tempo, equipa, nem orçamento para comunicar com o público e saírem do teatro, descobrirem a cidade e convocar as pessoas onde estão, que é o que estamos a fazer”. Há muitas mensagens que acabam por não ser transmitidas à maioria das pessoas. As sinopses das peças, normalmente, são escritas a pensar num público mais erudito, são pouco claras e cativantes. “A mensagem chega sempre a um número muito reduzido de pessoas, não só pelos meios usados, mas também pela forma de comunicar. As sinopses estão cheias de referências e as pessoas acabam por não se relacionar com uma coisa que não conhecem”, lamenta.
Há muito tempo que as duas amigas partilhavam algumas preocupações e almejavam resolver esta lacuna das instituições culturais. “Queríamos trabalhar com novos públicos, perceber de que forma conseguiríamos fazer chegar a cultura a pessoas que não tinham hábitos culturais e com quem as instituições geralmente não comunicam tão bem ou não comunicam de todo”, explica Nádia Sales Grade. A ideia foi apresentada, o ano passado, à direcção artística do Teatro Nacional D. Maria II, a primeira a aceitar o desafio, e estão agora à procura de novos parceiros. Quem quiser conhecer melhor o projecto pode aceder a www.primeiravez.pt/. Aí encontrará informações sobre as peças em exibição, conteúdos relacionados com o teatro e entrevistas às pessoas que vão pela primeira vez ao D. Maria. “Queremos mostrar às pessoas que todas as histórias podem ser contadas, como a história delas”, conclui Ana Pereira.