Mudança do Arquivo Municipal de Lisboa para edifício “sem condições” ameaça acervo, dizem funcionários
A passagem de parte do imenso acervo documental da capital, incluindo o importantíssimo Arquivo Histórico de Lisboa, para as Torres do Alto da Eira, na Penha de França, está a ser contestada. O edifício, que já havia concentrado tais serviços, foi encerrado em 2001 por falta de condições de salubridade. A saúde de documentos e funcionários corria risco. Agora, a Câmara de Lisboa quer voltar a depositar ali muita da documentação, após a realização de obras de requalificação orçadas em três milhões de euros. Mas, ainda assim, alegam trabalhadores, o edifício “não cumprirá as mais básicas regras nacionais e internacionais” e ficará numa zona mal servida de transportes, prejudicando os cidadãos que desejem lá ir.
O que têm em comum, entre outros documentos, o traslado feito por Dom Afonso I do foral atribuído a Lisboa em 1179 por Dom Afonso Henriques; o foral atribuído por Dom Manuel I; o Cartulário Pombalino; toda a documentação referente ao planeamento urbanístico da capital, incluindo os primeiros levantamentos topográficos de Silva Pinto e Filipe Folque; os processos com informação relevante sobre cada edifício existente na cidade; os espólios particulares de arquitectos como Cassiano Branco, José Luís Monteiro ou Victor Palla e Bento d’Almeida; a colecção de fotografia onde pontificam nomes como Joshua Benoliel e o registo audiovisual da evolução da cidade? Além de estarem à guarda do Arquivo Municipal de Lisboa, parte deles encontrar-se-ão em perigo de deterioração, devido à alegada falta de condições do edifício, situado no Alto da Eira, Sapadores, na freguesia da Penha de França, onde a Câmara Municipal de Lisboa (CML) planeia concentrar parte desse acervo. Será lá também que estes serviços passarão a garantir o atendimento ao público.
Ao alerta é lançado pelos trabalhadores do arquivo, que consideram serem as instalações das torres do Alto da Eira desadequadas, não só por “não cumprirem as mais elementares regras utilizadas internacionalmente na prática arquivística”, como por deterem elas mesmas um histórico de problemas que, aliás, levou à sua evacuação em Outubro de 2001. Era ali, precisamente, que funcionava parte do Arquivo Municipal de Lisboa, incluindo muita da mais relevante documentação histórica da cidade, quando o Instituto Ricardo Jorge ordenou o seu encerramento por deficientes condições de salubridade. Na altura, foram detectados potenciais focos de contaminação de legionella e de qualidade do ar imprópria nas instalações que ocupavam os níveis inferiores de duas torres de habitação social construídas em 1976 – e em relação às quais se chegou a pensar dar ordem de demolição, tal o grau de degradação. Após as obras de requalificação do imóveis, realizadas há quatro anos, a Câmara de Lisboa entendeu que os mesmos poderiam voltar a acolher o arquivo.
Instalações do Bairro da Liberdade, onde se concentra hoje muita da documentação histórica e não só
Apesar decorrerem os trabalhos de beneficiação dos espaços que, ainda este ano, acolherão muita da documentação do Arquivo Municipal de Lisboa que está concentrada no pólos do Bairro da Liberdade e do Arco do Cego, os funcionários ainda têm esperanças de conseguir travar a mudança. Para ajudar a atingir tal objectivo, estão, há mais duas semanas, a recolher assinaturas através de uma petição que pretende levar o assunto a discussão na Assembleia Municipal de Lisboa (AML). “Esta transferência contraria todas as recomendações internacionais para a construção de edifícios de arquivo e adia, uma vez mais, a resolução definitiva que passa por transferir o Arquivo de Lisboa para um edifício único, central e digno de uma cidade capital do país”, lê-se no documento, que na última sexta-feira (22 de Março) já havia recolhido a concordância de 1.020 cidadãos. “Ainda vamos a tempo de encontrar aqui uma solução de bom-senso neste processo”, diz a O Corvo um dos funcionários, preferindo manter o anonimato.
A tal solução equilibrada que os trabalhadores defendem passaria por “encontrar, num curto prazo, um edifício digno de um arquivo, de utilização única, construído de raiz ou requalificado, numa zona central, segura e de fácil acesso, que garanta as condições de salvaguarda do seu património, fundamental para o registo da história e da memória da cidade”. Algo que, garantem os funcionários municipais contestatários, está longe de estar assegurado no Alto da Eira, recordando que as deficiências detectadas no início da década passada eram tão graves que punham em perigo não apenas a integridade do acervo documental como a saúde de quem ali trabalhava ou fazia pesquisa. Mesmo com as obras de requalificação – nas quais a Câmara de Lisboa deverá gastar cerca de três milhões de euros -, o espaço terá mais desvantagens que vantagens, alegam. As garagens de um edifício de habitação social, situado numa “zona da cidade mal servida de transportes e pouco central”, não reunirão as condições para a preservação de documentos e não serão espaço adequado à circulação de funcionários e do público, dizem.
O edifício do Alto da Eira foi a solução encontrada pelo município para alojar o Arquivo Histórico de Lisboa, na sequência do grande incêndio de 1996 nos Paços do Concelho. Até então, e desde 1988, o espaço acolhia em exclusivo as muitas toneladas de papel do chamado arquivo intermédio, onde se contam, por exemplo, os processos de licenciamento urbanístico ou outra documentação. “A partir dessa altura, o Arquivo Histórico nunca esteve bem”, diz uma outra funcionária, que também prefere resguardar a sua identidade. O seu descontentamento baseia-se no facto de entender que a solução de recurso encontrada em 2004, depois de terem sido detectados os tais problemas estruturais no Alto da Eira, e que passou pela instalação do Arquivo no rés-do-chão de prédios municipais no Bairro da Liberdade, em Campolide, tem sido tudo menos satisfatória. “Não há ali condições para toda a documentação mais antiga nem para os formatos digitais”, complementa o colega. Os trabalhadores dizem existir problemas de manutenção, nomeadamente ao nível da climatização, que comprometerão a conservação do espólio.
A solução para o problema, defendem os representantes dos trabalhadores, terá sempre de passar pela construção de um edifício central único, onde se concentrem também a Videoteca – que, segundo os planos da CML, deverá ser transferida de Alcântara para o Bairro da Liberdade – e o Arquivo Fotográfico – a funcionar na Rua da Palma. “A nível europeu, deveremos ser a única capital que ainda tem os serviços de arquivo organizados desta forma, espalhados por vários locais, como solução de recurso. Nem as câmara mais pequenas, no nosso país, fazem opções destas”, diz a funcionária com quem O Corvo falou. Um grupo de trabalho criado pela autarquia de Lisboa para estudar soluções indicava, em 2015, a necessidade de se optar por uma solução com um carácter mais final. “Não sabemos porquê, a câmara achou que este regresso ao Alto da Eira era uma boa solução. Podem até sugerir que é temporária. Mas sabemos que, quando tal acontecer, será definitivo, será coisa para 30 anos”, lamenta o funcionário.
O Corvo questionou a Câmara de Lisboa – cuja vereadora da Cultura, Catarina Vaz Pinto, terá sido alertada para o descontentamento dos funcionários, numa reunião ocorrida a 9 de Janeiro – sobre as críticas feitas pelos funcionários descontentes ao processo de transferência do Arquivo Municipal. Mas não obteve resposta, até ao momento da publicação deste artigo.