Há quatro rotas feministas por Lisboa para resgatar a memória das lutas das mulheres e o seu lugar na cidade

REPORTAGEM
Sofia Cristino

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CULTURA

Cidade de Lisboa

26 Dezembro, 2018

Centenas de mulheres participaram em momentos marcantes da história, mas a sua presença na toponímia da cidade é quase invisível. A Associação Mulheres Sem Fronteiras começou a organizar, por isso, rotas feministas por Lisboa, palco de muitos desses acontecimentos. O objectivo é dar a conhecer essas protagonistas e assim colmatar as lacunas dos roteiros históricos tradicionais. Há quatro percursos definidos: um nas Avenidas Novas, que O Corvo acompanhou; outro na zona do Chiado, que evoca as feministas republicanas; outro na Avenida Almirante Reis, relacionado com a luta pelo direito ao voto; e uma rota de arte urbana, em Marvila. As marcas estão por todo o território da capital. Entre o Parque Eduardo VII e os Restauradores, aconteceu a primeira manifestação feminista no pós-25 de Abril, uma exposição mundial de livros de autoras do sexo feminino, setecentas mulheres reuniram-se num congresso internacional, e foi exibido o filme da primeira realizadora a participar no Festival de Cinema de Cannes.

O início do percurso está marcado para as duas horas da tarde de domingo. O ponto de encontro é o topo do Parque Eduardo VII, e há mais do que um motivo para a escolha. Foi ali que aconteceu a primeira manifestação feminista em democracia, em Portugal, em 1975, há um jardim com o nome da fadista Amália Rodrigues e uma estátua alusiva à maternidade. Na Avenida Sidónio Pais, não muito longe, viveu Madalena Barbosa, fundadora do Movimento Libertação das Mulheres (MLM). Por causa da ausência destes conteúdos nos manuais escolares, do ensino básico ao universitário, mas também pela falta de referências em roteiros turísticos tradicionais, as homenagens a mulheres, em locais públicos, têm passado despercebidas.

 

“Achava que este jardim era um prolongamento do Parque Eduardo VII e, além disso, não é comum existirem espaços verdes com o nome de mulheres”, diz Margarida, uma das participantes da rota feminista. Ao lado, mais quatro formam uma roda e ouvem, atentamente, as primeiras indicações de Alexandra Alves Luís, uma das fundadoras da Associação Mulheres Sem Fronteiras, responsável pelas rotas. A orientadora do percurso resume os principais pontos de paragem do trajecto, que termina nos Restaurantes, e pergunta ao grupo o que as levou a participarem. A maioria pela curiosidade de conhecer mais sobre todos os assuntos ligados ao feminismo, explicam, e, outras, admitem, pela falta de conhecimento do tema. “Tenho apenas algumas ideias soltas sobre a dimensão do feminismo, em Portugal, e gostava de saber mais. Sou guia turística e esta é, também, uma forma de ter novas ideias para os meus próprios percursos”, explica Margarida.

Ao longo do passeio, Alexandra Alves Luís vai perguntando o que aconteceu em cada sítio, mas poucas se arriscam a responder. Devolvem-lhe silêncios e dúvidas, que a coordenadora da rota se prontifica a esclarecer. No miradouro do maior parque central da cidade, também foi erguido um monumento evocativo do 25 de Abril, do escultor João Cutileiro, alvo de muita polémica pela sua forma fálica. Ao lado, em Janeiro de 1975, o Movimento de Libertação das Mulheres, fundado por Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno – autoras perseguidas pela ditadura salazarista, que as acusou de escreverem, com Maria Velho da Costa, um livro pornográfico, as “Novas Cartas Portuguesas” – convocou um protesto contra uma sociedade que continuava a oprimir as mulheres. O jornal Expresso publicou uma notícia anónima a anunciar a manifestação, que contou, para surpresa de todas as participantes, com centenas de pessoas.

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O percurso acompanhado por O Corvo teve início no alto do Parque Eduardo VII

Alguns dos momentos mais marcantes da história do país, feita por mulheres e homens, aconteceram nas ruas, praças e jardins de Lisboa, mas a presença do sexo feminino na toponímia da cidade é praticamente inexistente. Alexandra Alves Luís começou, por isso, a delinear estes percursos pela cidade, para contar a história de uma forma “mais completa e justa”. “Não fazemos parte da toponímia, do espaço público, quase não existimos. Nos edifícios onde vivemos, também aconteceram coisas importantes, mas não estão assinaladas, nem são do conhecimento geral da população”, evidencia. A Associação Mulheres Sem Fronteiras concorreu também, por isso, este mês de Dezembro, ao Orçamento Participativo de Lisboa, para que alguns destes eventos possam estar assinalados na cidade. “Não é muito fácil, porque há poucos sítios sem nomes. E, para mudar os topónimos dos lugares que já têm nome, é preciso haver uma boa justificação. O Bairro das Caselas, em Belém, tem mais ruas a homenagear mulheres, porque lá havia mais sítios sem nomes atribuídos”, explica.

 

Em Lisboa, existem alguns livros sobre a toponímia no feminino, mas, normalmente, não se conhecem os sítios onde as mulheres ligadas a movimentos feministas se encontravam e organizavam. As rotas feministas, realizadas pelo menos uma vez por mês, pretendem dar a conhecer esses lugares, “resgatar essa memória e trazer outros temas ao debate público”. “É um trabalho de pesquisa constante”, admite Alexandra Alves Luís. Na cidade, há quatro rotas feministas: uma nas Avenidas Novas, onde se fala de feminismos mais actuais; outra na zona do Chiado, que evoca as feministas republicanas; outra ainda na Avenida Almirante Reis, relacionada com a luta pelo direito ao voto; e uma rota de arte urbana, em Marvila. Nesta última, problematiza-se o acesso das artistas à pintura de murais na cidade. No próximo ano, a Associação Mulheres sem Fronteiras ambiciona ainda fazer percursos temáticos, como “A Lisboa de Maria Teresa Horta”.


 

 

As visitas são momentos de aprendizagem, mas também de desconstrução de mitos. Ao contrário do que terá sido várias vezes noticiado, não se queimaram soutiens na primeira manifestação feminista. “Maria Teresa Horta até já disse que nem havia dinheiro para soutiens, não fazia sentido queimá-los”, conta Alexandra, entre risos. Enquanto recorda o momento marcante para a história das mulheres, a coordenadora da rota mostra vídeos, fotografias, notícias de jornais e documentos que corroboram os factos que relata. “Elas fizeram coisas impressionantes para a situação em que estavam, num movimento que nem sequer estava formalizado. Ocuparam uma casa, que foi a sede do Centro de Informação e Documentação de Mulheres, fundaram uma editora e publicaram quatro livros”, enumera.

 

Ainda no topo do Parque Eduardo VII, no antigo Pavilhão dos Desportos – agora Pavilhão Carlos Lopes -, aconteceu o primeiro congresso do Movimento Democrático das Mulheres (MDM), criado em 1968. O encontro reuniu, em 1980, setecentas delegadas do MDM vindas de todo o país, mas também de outras partes do mundo. Valentina Tereshkova, a primeira mulher a ir ao espaço, visitou Lisboa por esta altura, a convite do MDM, facto que podemos comprovar numa fotografia onde surge ao lado do Álvaro Cunhal e de Maria Lamas.

 

Quase uma hora depois do início da rota, ao descer o parque, o sítio onde se realiza a Feira do Livro também é motivo de paragem. “Virmos à feira é uma forma de visitarmos e darmos força às escritoras portuguesas, que muitas vezes não têm o reconhecimento que merecem. Alterarmos os nossos percursos e a forma como usufruímos do espaço público, também pode contribuir para a mudança”, explica a orientadora da rota. No trajecto em direcção à Praça Marquês de Pombal, fala-se de outros nomes que contribuíram para momentos de viragem da história. Na proclamação da República, em 1910, Amélia Santos lutou ao lado dos revolucionários republicanos. Mais de cem anos depois, nas comemorações do 25 de Abril de 2014, surgiu pela primeira vez no desfile o grupo As Toupeiras. O movimento é formado por três artistas plásticas, Bárbara Assis Pacheco, Teresa e Margarida Dias Coelho – filhas de Margarida Tengarrinha, antiga deputada do PCP -, e uma professora de história, Piedade Gralha.

 

 

À medida que nos deslocamos para as ruas transversais à Avenida da Liberdade, partilham-se opiniões e fazem-se muitas perguntas. As informações são quase todas novas para este grupo de curiosas das questões feministas. Barata Salgueiro, advogado que cedeu e vendeu a preços simbólicos alguns terrenos à Câmara de Lisboa, dá nome a uma rua perpendicular à Duque de Palmela, mas, neste arruamento, a história também se construiu com mulheres. Na Sociedade Nacional de Belas-Artes aconteceu a primeira exposição mundial de livros escritos por mulheres, em Janeiro de 1947. No evento, estiveram 29 países representados e disponíveis mais de três mil livros.

 

Nas paragens, fala-se também sobre o contributo de muitas mulheres na história e cultura da cidade. Maria Lamas, jornalista e escritora, esteve envolvida na preparação desta iniciativa, enquanto presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, uma organização que terá fechado a mando de Salazar. Andou ainda pelo país a conhecer diferentes realidades, num trabalho de campo que resultaria num livro sobre a condição das mulheres portuguesas naquele ano. “No final da II Guerra Mundial, a exposição trouxe muita gente. É impressionante o que estas mulheres fazem e, num Portugal fechado por causa da ditadura, é de valorizar ainda mais”, salienta Alexandra. Há quarenta e quatro anos, o 25 de Abril não seria popularmente conhecido por Revolução dos Cravos se Celeste Caeiro não tivesse saído do restaurante onde trabalhava, na Rua Braamcamp, com um molhe destas flores. O gerente do espaço terá dito aos empregados para levarem as flores, compradas para decorar o espaço, porque estaria a acontecer um golpe militar. Ao chegar ao Largo do Carmo, Celeste deparou-se com os tanques de militares e ofereceu os cravos.

 

 

Um dos últimos pontos de paragem da rota feminista é a Avenida da Liberdade. No hotel Tivoli, pára-se para falar de Beatriz Costa. A actriz, natural da Malveira (Mafra), terá vivido durante vários anos no Tivoli. Ao lado, no cinema de São Jorge, estreou um filme de Bárbara Virgínia que, com apenas 22 anos, foi a primeira mulher a apresentar um filme no Festival de Cannes. Depois de quatro horas a criticar-se a ausência das toponímias femininas e de instituições culturais com nomes de mulheres, na cidade, é quase no fim do percurso que conhecemos as excepções: o Teatro Maria Vitória, no Parque Mayer, e a Rua das Pretas, uma transversal à Avenida da Liberdade. Este arruamento é o único que faz referência a mulheres africanas e afro-descentes. “Há um problema muito grave na cidade de invisibilidade destas mulheres. Só há cinco topónimos de mulheres africanas ou afro-descentes em toda a Lisboa, e não será por acaso”, critica Alexandra Alves Luís. O grupo de mulheres acena com a cabeça em sinal de concordância e lembra polémicas relacionadas com a escravatura.

 

O percurso termina nos Restauradores, em frente da antiga sede da Secretaria de Estado da Informação e Turismo (SEIT), que se situava no Palácio da Foz. Neste edifício, durante vários anos, trataram-se de todos os assuntos ligados a questões de género e igualdade. Ali, as mesmas mulheres que convocaram uma manifestação para o Parque Eduardo VII, em 1975, voltariam a juntar-se. Desta vez, para exigir uma sede para o Movimento de Libertação das Mulheres. Entre as mulheres que se deslocaram ao centro de Lisboa para satisfazerem curiosidades antigas, as reacções são unânimes – todas estão surpreendidas com o que aprenderam naquela tarde.

 

 

As rotas feministas têm decorrido apenas em português, mas a Associação Mulheres Sem Fronteiras quer cativar outros públicos, como visitantes estrangeiros, e chegar a escolas e grupos de pessoas mais vulneráveis. “A ideia é trabalhar a memória histórica e o direito à cidade. São rotas em construção, tentamos que haja debate e que as participantes contribuam com dicas. É como se fosse uma teia que se vai tecendo com toda esta informação, e os homens também são bem-vindos”, convida Alexandra Alves Luís.

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