Pedro Rua, carteiro há 35 anos (Os Reis do Bairro – Heróis desconhecidos de Lisboa)

REPORTAGEM
Marcos Fernandes

Texto & Fotografia

VIDA NA CIDADE

Avenidas Novas

31 Janeiro, 2018

Marcos escreve ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.

“Já fui mordido várias vezes”, lembra Pedro Rua, de lisura no olhar. “Não dá para correr. Seria pior! Os cães não gostam de carteiros, não sei porquê. Antes, falava-se que seria por causa da farda e de andarmos a pé com mala, mas hoje em dia andamos de carrinho e os cães continuam atrás de nós!”

Pedro Rua nasceu em Lisboa há 54 anos. É carteiro há 35, dos mais antigos na cidade. “Tenho-me entretido aqui”, confidencia. Chegou a trabalhar na hotelaria, mas foi nos Correios que abraçou uma carreira. E não se imagina noutra coisa. “Gosto. É um trabalho um bocado livre. Não temos a pressão de estar dentro de um gabinete. Andamos à vontade. Gerimos o nosso tempo, gerimos o nosso trabalho”, argumenta. Pedro Rua entra ao serviço, a cada dia, pouco depois das sete da manhã, na estação dos CTT do Bairro do Rego. Ao serviço chega, igualmente bem cedo, a correspondência da central, praticamente já dividida em giros.

Os Reis do Bairro é uma rubrica mensal do jornalista Marcos Fernandes, na qual parte à descoberta de heróis anónimos da cidade de Lisboa.

O carteiro prepara o saco e parte em distribuição, calcorreando calçadas gastas pelo tempo e intempéries, faça sol ou faça chuva, nas zonas de Entrecampos, Avenida das Forças Armadas e no Rego. “De Inverno, é complicado”, desabafa. “No Verão, também é difícil, mas a gente aguenta melhor o calor…É uma questão de hábito”. Pedro Rua estima 18 quilómetros percorridos por dia. “Isto só no serviço de distribuição! O que caminhamos aqui dentro da estação não é contabilizado. Devem ser mais um três ou quatro quilómetros”. E se, antigamente, a correspondência era mais miúda, hoje raras são as cartas. Os CTT apostam mais nas encomendas, garante-nos o carteiro. “Não precisamos de andar em ginásios a fazer preparação fisica! Esta ginástica chega bem”, diz a O Corvo, com um misto de franqueza e ironia.

O carteiro conhece toda a gente e a todos fala, confia o senso comum. “É um bocado por aí”, confirma, em parte, Pedro Rua. “Mas já não há um respeito tão grande, como havia antigamente. As pessoas eram mais acolhedoras. Eram muito mais acolhedoras. Antes, o carteiro era visto como um amigo. Nas periferias, ainda é assim. O carteiro faz-lhes mais falta, entra no âmbito familiar”. Mas, nesta Lisboa de turismo farto e alojamento local fértil, por entre os inquilinos visitantes e as empresas que implantam sedes no coração da cidade, Pedro Rua ainda vai batendo à porta de alguns populares, velhos, e conhecidos moradores do Rego e arredores. “Cria-se uma certa amizade. Não é com toda a gente, mas criam-se amizades”. E tal clientela de longa data ainda lhe pede auxílio para ler cartas. Confrangedor, supor-se-á? “Não. Antes ainda se escreviam cartas de amor. Agora, só quem está emigrado é que envia cartas mais pessoais, no Natal”.


Tal pai, tal filho, quis-lhe o destino, e Pedro Rua não teve grande opção ainda menino. “Já vem de família. O meu pai também era carteiro. Ele é que me incentivou a vir para os CTT”. Tinha 19 anos. “Arrastou-me para aqui. E cá ando.” Já o filho de Pedro Rua seguiu outro rumo, “outra filosofia”, na opinião do pai. O desinteresse dos jovens em manusear envelopes não lhe espanta, ele que vê nos colegas mais novos uma dificuldade em sentirem-se confortáveis no labor. “A maior parte dos jovens já não quer vir para os Correios. Não se aguentam nem um dia”, diz quem também vai dando formação a novatos. “A malta vem, aprende, vê como se faz, vai para a rua sozinho e, no outro dia, já não vem”. Do cansaço em caminhar à fadiga de decorar “muita informação”, Pedro Rua está certo de que “ou se tem mesmo vontade, e acaba por ficar umas semanas até se integrar a sério, ou desiste-se”.

E os mesmos motivos que afugentam jovens e pouco promissores carteiros vão corroendo, aos poucos, quem muito deu à distribuição postal. “Vai ser difícil trabalhar como carteiro até à idade de reforma. Isto rebenta muito connosco. Acaba por ser uma profissão de desgaste físico muito grande”, lastima-se, apesar de não se imaginar a trabalhar noutra empresa. “Penso que, daqui a uns anos, talvez arranjem uns lugares mais compatíveis com quem tem mais idade, em que a gente dê mais rendimento do que andar na distribuição”. Até lá chegar, há que preparar o saco, calcorrear calçadas gastas pelo tempo e intempéries, faça sol ou faça chuva, que Entrecampos, as Forças Armadas e o Rego têm correspondência a receber. No apelido que se poderia julgar alcunha, Pedro Rua vê uma mera coincidência: “Já é de nascença que ando na rua”, graceja o carteiro.

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