Em Carnide há uma livraria solidária e leva histórias a casa de quem está sozinho

REPORTAGEM
Sofia Cristino

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O CORVO

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CULTURA

Carnide

5 Março, 2018

Qualquer pessoa pode doar e comprar livros a preços que não ultrapassem os cinco euros, na nova livraria solidária de Carnide. Aberta há pouco mais de uma semana, já muitas pessoas a visitam, principalmente pelos valores acessíveis. Tanto que, logo no primeiro dia, uma mãe apareceu em busca de uma edição d’Os Maias para a sua filha poder lê-la. As receitas dos livros reverterão para causas culturais e solidárias da freguesia, como leituras ao domicílio e serões de conto. “Vamos visitar famílias com pais que não sabem ler ou escrever, que é uma realidade ainda muito presente”, afirma Paulo Quaresma, um dos mentores da livraria e antigo presidente da junta de freguesia. Os serões de conto terão lugar em sítios inesperados, como um café ou uma esquadra da polícia. A Boutique da Cultura, entidade que criou o espaço, recebeu inscrições de 70 pessoas para fazer voluntariado. “Até da Margem Sul vieram, o que também mostra o muito interesse que existe por este tipo de iniciativas”, salienta João Oliveira, outro dos responsáveis.

“Logo no primeiro dia, veio cá uma mãe à procura de Os Maias, obra de leitura obrigatória no ensino secundário, para a filha. Já apareceram mais pessoas a perguntarem se temos mais livros de Eça de Queirós e de José Saramago, porque precisam deles e aqui são mais baratos”, conta João Oliveira, um dos responsáveis pela nova livraria solidária que acaba de abrir nas traseiras da Igreja da Luz, em Carnide. As obras literárias, provenientes de doações, estão à venda por preços baixos, nunca ultrapassando os cinco euros, e as receitas destinam-se a causas culturais, como leituras ao domicílio, realização de peças de teatro, edição de novos livros e a promoção de jovens autores.

Do verde ao azul, vermelho e amarelo, cada obra literária está catalogada com uma cor correspondente ao seu preço. Os valores variam entre um e cinco euros, dependendo do seu estado de conservação ou da edição da obra. Os clássicos da literatura lusófona e estrangeira dão as boas-vindas, logo à entrada. É no segundo piso que podemos encontrar outro género de livros, técnicos, temáticos e infantis.

Quando a livraria abriu, a 23 de fevereiro, já tinha 7 mil exemplares inventariados. As doações vieram da Câmara Municipal de Lisboa (CML), da livraria Joaninha, de particulares, entre outros. Os livros mais procurados, surpreendentemente, têm sido livros de leitura obrigatória na escola. “Isto revela muito de uma realidade social que nem sempre se têm consciência que existe”, explica João Oliveira.

Agora, à medida que vão sendo vendidos, são substituídos pelas novas ofertas, que chegam todos os dias. Já há uma sala com centenas de livros a aguardarem catalogação. Qualquer pessoa pode doá-los e comprá-los, independentemente da sua área de residência, e são aceites todas as obras, à excepção de dicionários, manuais escolares e enciclopédias. A livraria está aberta de segunda a sexta-feira, das 14h30 às 19h30 e, no primeiro sábado de cada mês, no mesmo horário. 

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Mário Ferreira, 33 anos, proprietário de um café na rua onde está instalado o novo equipamento cultural, já sente mais agitação nas ruas. “Vê-se mais movimento, mesmo de pessoas idosas. Uma cliente disse-me que foi à livraria e comprou um livro para a filha que não encontrava em lado nenhum. Agora, quando vemos caras novas aqui, como é um meio muito pequeno, já sabemos que vão à livraria”, diz, entre risos. “As pessoas compram livros mais baratos e que são precisos na escola. É uma ideia muito boa para quem não tem dinheiro, e aqui há muitas pessoas nessa situação”, comenta Carlos cruz, 60 anos, enquanto bebe uma cerveja.

O projecto foi pensado pela Boutique da Cultura, em parceria com outras duas associações, a Crescer a Cores e a Azimute Radical, e o financiamento inicial veio do programa BIP-ZIP (Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária) da Câmara Municipal de Lisboa (CML). O edifício onde está a funcionar a livraria, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, estava devoluto há mais de dez anos, tendo sido totalmente requalificado. A recuperação do interior da nova livraria teve a mão de um dos voluntários.

“Montei as prateleiras todas, faço mais as funções de bricolage. Deu muito trabalho, mas é uma forma de me sentir activo, agora que estou reformado. É gratificante”, confessa Carlos Carrilho, 62 anos, voluntário e morador na freguesia. Celeste Amaral, 69 anos, partilha a mesma opinião. “Vi aqui uma forma de não estar parada e de fazer companhia a outras pessoas. Ler é uma forma de nos cultivarmos e viajarmos e quero transmitir isso aos habitantes”, diz a voluntária.

A ideia é que a livraria também seja “uma espécie de espaço cultural”, onde as pessoas se encontrem para conviverem, estando aberta a outro tipo de iniciativas, tais como lançamentos de livros, sessões de conto, workshops e tertúlias. “Na inauguração da livraria, enviámos por correio um convite a todos os moradores para virem à inauguração. Algumas pessoas disseram-me que ficaram muito felizes com esse gesto. Queremos envolvê-los, criar proximidade, fazê-los sentir parte da freguesia. Também recebemos uma pessoa que nos disse que nunca tinha vindo a Carnide e gostou muito de conhecer a freguesia”, explica Paulo Quarema, da Boutique da Cultura.


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José López e Sebastien Pellier vieram para Portugal ao abrigo de um projecto de intercâmbio de voluntariado e são eles que recebem os interessados em conhecer o espaço todos os dias. José López, 28 anos, veio de Alicante, em Espanha, e faz catalogação dos livros. “É muito gratificante fazer voluntariado. Acho que recebemos mais do que a pessoa que está a ser ajudada. Tem sido uma aprendizagem muito humana. O passa-palavra está a funcionar muito bem, muitas pessoas voltam para mostrar a amigos e familiares. Estou muito feliz”, diz José, que já pensa ficar a viver em Lisboa.

Sebastien Pellier, 26 anos, veio de Montpellier, no sul de França e, além de ajudar José na inventariação, forrou a casa-de-banho com folhas de livros velhos. “Ali não há desperdício”, diz, enquanto aponta para o resultado do seu trabalho. “O voluntariado é muito importante, porque não se trata de ganhar dinheiro, mas de dar a nós próprios harmonia e gratificação”; acrescenta.

Ana Marques, 36 anos, moradora, está de visita à livraria pela primeira vez. Vai comprar três livros e quer saber quantos livros pode doar. “Era mesmo isto que faltava à freguesia. Para mim, foi muito importante, essencialmente pelos preços”, frisa.

A associação cultural de Carnide recebeu inscrições de 70 pessoas, de várias faixas etárias, interessadas em fazerem voluntariado. “Até da Margem Sul vieram, o que também mostra o muito interesse que existe por este tipo de iniciativas”, conta João Oliveira. Dessas, foram selecionadas 25, que ajudaram não só na catalogação dos livros, como na própria construção e revitalização do espaço.

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“Idealizamos esta livraria para dar uma nova vida à freguesia, democratizar a cultura e criar um espaço de troca de livros. Queríamos, há muito tempo, dinamizar mais a zona norte de Carnide. No dia da abertura da livraria foram arranjados dois candeeiros nesta rua, que estavam estragados, e Carnide ganhou mais luz”, explica Paulo Quaresma, da associação cultural Boutique da Cultura, salientando, ainda, que esta é uma forma da freguesia não estar só dependente de financiamento público para realizar actividades culturais.

Além da abertura da livraria, estão a ser preparadas outras iniciativas, como as leituras ao domicílio ou os serões de conto, que irão decorrer uma vez por mês, em sítios improváveis, como esquadras, padarias, cafés, entre outros. Vai haver, ainda, uma espécie de bookcrossing (a prática de deixar livros em espaços públicos para as pessoas levarem). “Queremos espalhar livros, sobretudo perto de paragens de autocarros, para as pessoas levarem e trocarem por outro. Os agentes da PSP disseram-nos que as pessoas iam roubar os livros, mas é isso mesmo que nós queremos. Roubem os livros!”, brinca João Oliveira.

Antes de se iniciarem as leituras ao domicílio, os voluntários estão a receber formação para entrarem em casa de pessoas desconhecidas e contarem histórias. A Santa Casa da Misericórdia, a Junta de Freguesia de Carnide, a Gebalis, empresa que gere bairros municipais em Lisboa, e a PSP vão ser os responsáveis por sinalizar os que irão receber esta visita. “Vão entrar dentro da casa das pessoas e têm de ir preparados e, por isso, vão ser acompanhados numa primeira fase. A PSP até já se disponibilizou para ir com eles, no início deste mês. Esperemos que, mais tarde, o projecto consiga crescer com o feedback dos participantes e ganhe, assim, outros contornos”, explica Paulo Quaresma.

Numa fase inicial, uma vez que se trata de uma acção com características muito peculiares, foi feita uma triagem dos candidatos. “No primeiro encontro com os voluntários, alertámos para o que iam encontrar, quando fossem fazer leituras a casa das pessoas, dissemos que podiam deparar-se com realidades muito complicadas, com cheiros, etc. É preciso uma maturidade e uma preparação que alguns ainda não têm. Fizemos uma selecção e algumas pessoas desistiram logo, ao tomarem consciência da dimensão do projecto. Perceberam que ser voluntário exige responsabilidade e um compromisso”, esclarece, ainda, João Oliveira.

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As leituras terão como destinatários principais os moradores que se encontram em risco de isolamento. “Além da população mais idosa, que normalmente está mais sozinha, há outro tipo de situações que temos de incluir. Pode ser uma pessoa relativamente nova, na casa dos 50 anos, que teve um AVC, por exemplo. Vamos visitar, também, pessoas com mobilidade reduzida e famílias com pais que não sabem ler ou escrever, que é uma realidade ainda muito presente”, alerta Paulo Quaresma.

A Boutique da Cultura pretende, ainda, dar uma nova vida aos livros que estão em pior estado. O intuito é, a partir das edições mais estragadas, construir pastas para congressos, pasta de papel para fazer vasos, marcadores de livros, entre outras ideias que possam surgir dos participantes. Este projecto destina-se, essencialmente, a pessoas em situação de desemprego, sendo o seu principal objectivo dar-lhes ocupação e, mais à frente, conseguirem ganhar algum dinheiro, com as receitas dos produtos que vão fazer e vender. 

A colectividade vai atribuir, ainda, o 1º Prémio Literário de Narrativa a novos escritores, desafiando-os a apresentarem um conto escrito sobre um bairro da cidade da Lisboa, até dia 30 de março. O vencedor do prémio será revelado em junho e consiste na edição da obra e na doação de 10% de exemplares da 1ª edição. Poderá obter mais informações através do endereço electrónico livraria@boutiquedacultura.pt.

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