Graffiti está fora de controlo na Calçada do Lavra e já é uma atracção turística

REPORTAGEM
Samuel Alemão

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CULTURA

Santo António

10 Março, 2016


O que começou como uma iniciativa resultante de um protocolo entre a antiga junta de São José e uma marca de aerossóis descambou num caos esborratado. A mancha de graffiti e tags avança desordenada por paredes, portas, janelas, cantarias e até na calçada. Os moradores sentem-se impotentes, bem como as juntas de freguesia de Santo António e de Arroios. Fala-se em falta de fiscalização. Mas também em sentimento de impunidade. Uma equipa de limpeza da Câmara de Lisboa foi agredida por um grupo de graffiters. A autarquia estará a estudar a melhor forma de actuar.

A noite já ia avançada. Eram duas da manhã, quando Catarina Raposo, moradora das Escadinhas da Calçada do Lavra, sentiu um forte cheiro a tintas. Vinha do exterior, tal como o ruído de pessoas a falar. Ao assomar-se à janela, deparou-se com um grupo de jovens a grafitar as paredes do seu prédio. Perguntou-lhes porque estavam a fazer aquilo. Eram todos estrangeiros e, em inglês, explicaram-lhe que lhes haviam dito que não havia problema, porque aquela seria uma área onde tal actividade era permitida. “Isto tornou-se num pesadelo”, desabafa Catarina, sobre o alastrar anárquico das pinturas ilegais de paredes naquela zona.

O fenómeno, que terá começado há cerca seis anos com uma iniciativa da antiga Junta de Freguesia de São José – hoje integrada na Freguesia de Santo António -, está fora de controlo e ameaça alastrar aos arruamentos vizinhos. Os danos à propriedade e ao espaço público avolumam-se. “Quando para aqui vim morar, este cenário não estava instalado. É uma rua muito bonita, mas agora está repleta de lixo visual. A situação tem-se agravado bastante”, critica Catarina. Ela e os restantes moradores, tal como as juntas de freguesia de Santo António e de Arroios, sentem-se impotentes ante a situação. Todos se queixam de falta de fiscalização.

Quem passe pelas escadas da Calçada do Lavra, que fazem a ligação entre o Jardim do Torel e o Largo da Anunciada, é surpreendido pela profusão de graffiti. Uma aparente anarquia policromática, na qual é difícil discernir onde se afirma uma “obra” ou se escondem os contornos de outra. Para além do muro de cimento, a mancha de desenhos, manchas e letras de todas as formas e feitios estende-se pelas fachadas dos prédios e cobre zonas da calçada. Olhando um pouco mais em volta, percebe-se que há também áreas de empenas de prédios – a parte sem janelas – nas redondezas onde esta forma de expressão está presente. A forma como tal terá sido conseguido deixa espantando um leigo.

Graffiti está fora de controlo na Calçada do Lavra e já é uma atracção turística

“Acho que isto vai ser difícil de travar porque já faz parte dos guias internacionais. A coisa está a descambar, está fora de controlo. Por vezes, sinto-me em casa como se estivesse numa linha de metropolitano em Brooklyn, há 30 anos”, comenta José Pedro Penha Lopes, morador e dono do prédio com os números 14 e 16 da Calçada do Lavra. Depois de ter comprado o imóvel, no início da década passada, e de o ter reabilitado nos anos subsequentes, assiste agora impotente à sua constante vandalização. Isto apesar de aquele elegante prédio amarelo – cuja contemplação para quem desce as escadinhas é entrecortada pelos movimentos pendulares do ascensor – ser sujeito a uma incessante acção de limpeza.

As pinturas diversas e os tags – inscrições – são uma recorrência na fachada daquele edifício, bem como dos que estão à volta. Há como que um vírus gráfico em permanente disseminação. “O que eles estão a fazer não tem valor artístico, é apenas uma coisa desordenada que causa danos no património, seja nas paredes, nas cantarias, nas portas ou nos vidros. Isto não faz sentido, a rua fica com um aspecto completamente feio e degradado”, desabafa o proprietário, que se queixa dos prejuízos financeiros tidos com as sucessivas repinturas das áreas expostas aos excessos de criatividade dos activistas de aerossol. “Há anos que estou a enviar emails às autoridades, alertando para isto, mas as coisas só pioram”, queixa-se.

José Pedro Penha Lopes não tem dúvidas em localizar a raiz do problema. “Tudo isto começou, em 2012, quando a Junta de Freguesia de São José fez um acordo com uma loja de materiais de graffiti, com artistas convidados, para pintarem uma secção de um muro nas escadas da Calçada do Lavra. No início, era só naquele sítio, mas, em pouco tempo, começaram a aparecer pinturas nas paredes mais próximas e, logo depois, nas outras”, explica. Até que a sua casa começou a ser visada. Apesar de fazer questão de, quase todas as semanas, pintar de novo em tons de amarelo por cima das pichagens e demais devaneios gráficos que vão sendo surgindo, José Pedro sente estar a perder a guerra.

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As chamadas para a Polícia Municipal, bem como os emails para as juntas de freguesia de Santo António e Arroios e para a câmara são uma constante. Mas os efeitos desta luta desesperada revelam-se nulos. Até porque, diz José Pedro, nem as autoridades parecem saber muito bem como lidar com a situação. Na verdade, o cenário tem assumido proporções alarmantes. “Acho que isto vai ser difícil de travar, até porque já faz parte de guias internacionais. Criou-se um circuito turístico para este género de coisas e aqui a Calçada do Lavra é uma espécie de Meca desta forma de expressão”, afirma, aludindo às diversas ocasiões em que se deparou com grupos de turistas conduzidos por guias. Apesar da sensação de impotência, este morador diz “imaginar que haja entidade preocupadas”.

Já ouviremos o que elas têm a dizer. Antes, escutem-se ainda os desabafos feitos ao Corvo por José Garrido, o gerente do The Elevator Hostel, resultado da recuperação do prédio situado mesmo em frente à casa de José Penha Lopes. “Este é um local especial da cidade, é muito visitado pelos turistas e custa-me ver o mais antigo elevador de Lisboa todo grafitado. Esta não é a imagem da Lisboa que conhecemos e que queremos dar a conhecer. Com as paredes cheias de tags e mensagens territoriais, às vezes, mais parece que estamos em Belfast ou Beirut”, caracteriza o responsável pela unidade hoteleira. Os danos na propriedade são evidentes.

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A actividade torrencial dos grafiteiros tem uma resposta à altura de José Garrido – tal como sucede, aliás, com o seu vizinho da frente. “A nossa postura é a de pintar logo por cima, mal surjam graffiti ou tags nas nossas paredes. É um trabalho sem fim. E que nos traz muitos prejuízos, porque temos despesa não só com os materiais como com a mobilização do nosso pessoal”, diz José Garrido, que salienta o facto de poder travar esta luta, ao contrário do que sucede com um grande número de pessoas naquela rua. “A maioria dos moradores são já idosos, não têm genica ou condições para estar a dar uma resposta destas”.

Mesmo que estivessem na disposição de o fazer, seria sempre uma tarefa difícil. É que, além das tintas nas paredes, muitas das pretensas intervenções artísticas são realizadas com recurso a marcadores, que contêm substâncias ácidas e, por isso, são mais danosos quando aplicados sobre cantaria, metal ou vidros. Além disso, quando se limpa, logo a seguir surge mais. O ciclo parece incessante. “Com uma certa frequência, aparecem aqui jovens estrangeiros que fazem excursões para que as pessoas vejam isto e, inclusive, até já assisti a uma em que uma família, com os filhos, fazia inscrições com marcadores”, conta o gerente do hostel.

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José Garrido sabe que os clientes do estabelecimento que dirige “não gostam do que vêem”. Para ele, há ali um claro problema de vandalismo, sancionado pela falta de actuação das autoridades. “Não tenho nada contra o graffiti, noutros contextos, mas não neste. Esta é uma zona histórica. Criou-se esta narrativa cheia de tolices, esta ficção, de que se pode graffitar em todas as zonas. Basta espreitar as redes sociais, onde abundam os elogios ao que aqui está. Convencionou-se que isto é arte e julgo que haverá um certo pudor por parte da Câmara de Lisboa em limpar toda aquela mancha. As juntas, por seu lado, não têm meios para fazer face a isto”.

São as próprias a admiti-lo. “Não podemos fazer grande coisa”, reconhece Vasco Morgado (PSD), presidente da Junta de Freguesia de Santo António, onde se situam as escadas da Calçada do Lavra – o arruamento propriamente dito, pelo qual circula o ascensor, divide aquela da freguesia de Arroios. O autarca não consegue esconder um certo embaraço, uma fez que foi ele, enquanto presidente da extinta junta de São José, quem deu início à movida do graffiti naquele sítio. Em 2011 – embora haja quem garanta ter sido no ano seguinte -, foi estabelecido um protocolo entre a junta e uma loja de materiais desta forma de expressão, para transformar em zona franca uma secção do muro que ladeia a escadaria.

Graffiti está fora de controlo na Calçada do Lavra e já é uma atracção turística

O espaço estava perfeitamente delimitado. E as intenções eram boas. “A junta seguiu as instruções do Gabinete de Arte Urbana (GAU) da câmara. No tempo da Junta de Freguesia de São José , a coisa estava controlada, mas depois foi ficando como se vê”, afirma o autarca, lamentando que “as coisas tenham ficado fora de controlo”. “Há um sentimento de impunidade entre quem faz isto. O problema é a falta de fiscalização, sobretudo da câmara e das autoridades policiais. Temos informado a Polícia Municipal sobre esta situação, mas sem grande efeito”, diz.

Vasco Morgado salienta que a autarquia por si liderada tem “gasto alguns milhares de euros para manter as paredes minimamente aceitáveis”. E reconhece sentir-se incapacitado para fazer frente ao problema, que se alastra para os arruamentos vizinhos. Quando a junta intervém, reparando o que foi danificado, passados dois dias tal acção pode já ter sido desfeita por uma nova investida de pinturas à margem da lei.

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Situação com que tem de lidar também Margarida Martins (PS), a presidente da Junta de Freguesia de Arroios. “Perante as reclamações que temos tido dos nossos fregueses, fizemos queixa à Câmara de Lisboa. Nós não temos capacidade para combater este problema”, diz a autarca, explicando que mesmo a câmara tem muitas e inexplicáveis dificuldades para o resolver. “Os trabalhadores que foram enviados por eles para limpar as paredes foram agredidos por indivíduos que lá estavam a fazer graffiti”, informa. Trata-se mesmo de um caso de polícia, considera.

Mas isso não impede que sejam tomadas medidas para travar este fenómeno. Margarida Martins acha que a dimensão do mesmo tem muito que ver com os interesses comerciais entretanto instalados. “Há empresas de tintas, de sprays, que incentivam estas coisas. Achamos lamentável que as propriedades sejam sujas”, afirma a presidente de junta, que, embora admita que o problema foi desencadeado pelo seu homólogo da freguesia de Santo António, prefere não lhe apontar o dedo. Diz estar concentrada na busca de soluções para o flagelo do aerossol. “A Câmara de Lisboa está a ver como pode actuar, está a estudar o assunto”, informa.

O Corvo questionou a Câmara Municipal de Lisboa sobre a dimensão do problema e sobre as possíveis soluções para o mesmo, mas não recebeu resposta até ao momento da publicação deste artigo.

No dia em que falou com o morador José Penha Lopes, O Corvo encontrou dois graffiters entregues à realização da sua arte nas paredes que lhes estão oficialmente destinadas. João, 28 anos, e o amigo Phew, um alemão de 39 anos, quebraram por momentos a sua concentração para dizer que, de facto, as coisas estão fora de controlo naquela zona. João diz que costuma grafitar comboios e carruagens de metro e que, “de vez em quando”, pinta paredes legais, como naquele caso. “O que aqui está nunca mais vai acabar”, afirma, criticando ainda a pintura dos elevadores do Lavra. “Isto é uma coisa parva, não é desafio nenhum. Qualquer um pode fazer isto”.

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