Lisboa na banda desenhada: uma novidade e um livro com 25 anos
ACTUALIDADE
João Morales
Texto
CULTURA
Cidade de Lisboa
31 Dezembro, 2018
Watchers
Luís Louro (texto e ilustrações)
Edições Asa
48 págs
14,95 euros
LISBOA NOS LIVROS
A identidade visual e arquitectónica da nossa cidade está bem representada na Banda Desenhada. Um trabalho recente de Luís Louro, Watchers, engrossa a lista de bons exemplos. E um livro de culto, Ana (com texto de Nuno Artur Silva e desenhos de António Jorge Gonçalves), que completou em 2018 um quarto de século, demonstra como a linhagem é antiga.
O mais recente trabalho de Luís Louro, reconhecido autor de BD, responsável pelo texto e desenhos deste álbum, avança pelo território da Internet, das redes sociais e de toda a obsessão que as rodeia, com uma evidente segurança no argumento e uma satírica representação gráfica que acentua a dimensão crítica tão presente nesta história.
Watchers (publicado pela Asa) parte da actividade de Sentinel, pseudónimo com que Daniel actua na Internet. Na ânsia de aumentar mais e mais o número de seguidores nas redes sociais, a sua estratégia passa por criar um canal onde são transmitidas imagens de diferentes partes da cidade, documentando o quotidiano pessoal e íntimo de qualquer um, das cenas mais caricatas, às mais violentas, dos devaneios inconfessáveis à intimidade do sexo, colocando em cheque permanente todo e qualquer um. Entre o registo e a denúncia (alicerçada numa pretensa e facilmente desmontável superioridade “moral”), as imagens vão sendo debitadas em tempo real e desvendando os bastidores do quotidiano, porque “o Sentinel consegue chegar a todo o lado”.
Se a lógica de alimentar as tendências voyeur dos seus seguidores se revela eficaz, angariando cada vez mais comentários online e uma adesão da multidão indiferenciada e indiferente à ética do que vai observando (ou que presidiu à captação e retransmissão das imagens), Sentinel não pensa ficar-se por aí. A sua ambição desmedida leva-o a intervir diretamente na realidade e criar, ele mesmo, factos e decisões (algumas que envolvem mesmo mortes), capazes de lançar o engodo a uma assistência contínua que não está disposta a preocupar-se com a validade ou as consequências daquilo que vai vendo.
O livro foi criado em duas versões, que diferem na conclusão. O cenário escolhido para esta narrativa é Lisboa, mas uma Lisboa num futuro estranho – como todos, poderão alguns dizer. As pessoas passeiam-se com miniaturas clonadas de animais selvagens – como leões, zebras ou camelos –, cruzam-se com o eléctrico 28 em direcção à Graça ou o autocarro 30, rumo à Picheleira… somente que estes meios de transporte andam no ar e não em estradas.
Este aspecto acaba por ser uma das facetas curiosas do livro de Luís Louro. Por um lado, a temática é assumidamente universal e contemporânea, trazendo para o centro do debate a circulação de informação, os limites da privacidade e a necessidade de os quebrar continuamente, alimentada pela natureza humana. Por outro, o cenário não podia ser mais tradicional e reconhecível, situando toda a acção numa cidade bem concreta – com reproduções magníficas da Sé de Lisboa ou das Escadinhas de São Cristóvão, mítica artéria que já tinha sido imortalizada no filme A Caixa, de Manoel de Oliveira.
Há mortes e críticas evidentes, como a luta entre animais selvagens numa cave, com assistência bem vestida. Porém, à semelhança de todos os seus trabalhos, o humor não está arredado neste livro de Luís Louro. Em algumas vinhetas encontramos uma “timeline” de comentários à imagem que decorre, onde convivem utilizadores completamente inventados com outros que evocam personalidades reais da BD portuguesa. A dada altura, lemos mesmo como “isto é que dava um bom argumento para uma BD”. A ironia vai tão longe e discretamente que, num grande plano de página inteira, é possível encontrar uma cena de sexo na via pública, praticamente impossível de descortinar nesta escala.
Não é de agora, este gosto de Luís Louro em adoptar Lisboa para nela fazer correr as suas histórias e personagens. Recorde-se a trilogia protagonizada pelo encapuçado O Corvo (Uma História de Lisboa; O Regresso e Laços de Família) ou Alice. Mas também não é uma atracção inédita, esta cidade já serviu de inspiração a diversos álbuns de BD, fixando os seus cenários e transformando os seus símbolos à medida de diferentes registos narrativos.
Por completar um quarto de século em 2018, faz todo o sentido evocar aqui um destes trabalhos, intitulado Ana, criado com os textos de Nuno Artur Silva e os desenhos de António Jorge Gonçalves, publicado em 1993 pelas Edições Asa. Ana é o volume inicial de uma trilogia em torno da figura de Filipe Seems (um detective muito especial), cujos volumes seguintes foram sendo publicados com um considerável espaçamento: A História do Tesouro Perdido, em 1994, e A Tribo dos Sonhos Cruzados, em 2003. Mais tarde, foram reunidos numa caixa conjunta, edição que ainda se encontra no mercado. Em 2018, o Fórum Fantástico (cuja organização integro), realizou uma exposição de pranchas dos três volumes, que esteve patente na Biblioteca Orlando Ribeiro, em Telheiras, entre 12 e 19 de Outubro.
O cenário onde decorre a acção de Ana é, notoriamente, Lisboa, contudo, com um registo de transformação a cada momento que nos causa um espanto quase permanente. Ao longo destas páginas, passeamos pela Baixa da cidade, com uma Rua Augusta e um Terreiro do Paço metamorfoseados pela abundante presença da água, uma espécie de Veneza transportada para a capital portuguesa.
Há encontros no Elevador de Santa Justa, festas no Observatório da Tapada da Ajuda, visionamento de cinema ao ar livre no espaço que era então o Jardim do Tabaco. As casas e as artérias por onde circulam as personagens são, ao mesmo tempo, facilmente reconhecíveis, mas distintas da sua existência real. E há um subtexto transversal ao espírito do livro nesta opção dos autores.
Nesta história, multiplicam-se várias figuras femininas baptizadas como Ana. Todas são Ana, com a mesma veracidade. A enorme teia de referências que ganha corpo ao longo da narrativa engloba Picasso, numa citação célebre (“primeiro encontro, depois procuro”) ou o argentino Jorge Luis Borges, com uma vinheta a reproduzir mesmo um fragmento do conto “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam”. Trata-se de um texto central no imaginário do autor, onde são abordados temas como o livre arbítrio ou as hipóteses que a relação entre Espaço e Tempo permite, numa conçepão desafiante que deve tanto à Física como à Poesia. Igualmente importantes, são as referências a um ícone do experimentalismo científico, o gato de Schrödinger, animal que ficou famoso por integrar uma experiência, ou especulação, criada pelo físico austríaco Erwin Schrödinger, demonstrando que, em certas condições, “o gato está vivo e o gato está morto”.
Da mesma forma, também a Lisboa que nasceu das palavras alinhavadas por Nuno Artur Silva e dos desenhos gerados por António Jorge Gonçalves é a Lisboa que todos conhecemos e é uma Lisboa completamente inventada.