Crónica

A Rua da Escola Politécnica, onde uma multidão de gente circula dia e noite, a pé e de automóvel, atraída pelas novas lojas, cada vez mais sofisticadas, que abrem todos os dias, e pelos restaurantes de “chefs” conhecidos ou de gastronomias exóticas que, a preços algo exorbitantes, vieram substituir velhas tascas tradicionais, está a ser abandonada por muitos dos antigos moradores.

Pressionados pelos senhorios, ansiosos pela oportunidade de negócio que lhes é proporcionada pelo extraordinário aumento de preços dos seus andares – nesta zona da cidade, o metro quadrado atinge os cinco mil euros, os preços mais altos de Lisboa, segundo a Remax -, idosos de saúde frágil abandonam as suas casas, aliciados às vezes pelas somas que lhes são oferecidas, muito baixas mas avultadas, para quem vive de reformas mínimas.

Foi o que aconteceu a uma mulher de noventa anos, a quem todos conhecem no bairro por “Avó Maria”, a cujo drama fui assistindo, relatado por ela, na cabeleireira de bairro que ambas frequentamos. O final não foi feliz.

A filha da Avó Maria, que depois de alguns desaires familiares, decidira voltar a viver com ela, acabou por convencer a mãe a aceitar os vinte e cinco mil euros que o senhorio lhe oferecia, se aceitasse sair da sua casa. A velha senhora resistiu quanto pôde, e chegou a pedir à cabeleireira para lhe arranjar um advogado que a ajudasse a opôr-se ao exílio forçado. Mas as circunstâncias estavam contra ela: já não conseguia viver sozinha, precisava do apoio da filha, e se o desejo desta era aceitar a oferta do senhorio, resignou-se a mudar para uma casa de renda barata, em Benfica.

Todos os meses, a Avó Maria, que continua muito lúcida, se mete num transporte público e ruma ao cabeleireiro, na Rua da Escola Politécnica, para arranjar o cabelo, carpir as suas mágoas e matar saudades da rua onde sempre viveu: “Aquilo lá é uma tristeza, não conheço ninguém e só vejo cimento à minha volta. Aqui, via o Tejo da minha cozinha. Tenho muitas saudades do rio, dos vizinhos, da minha casinha”, confidencia ela à cabeleireira que lhe penteia os caracóis brancos.

 

As histórias de gente expulsa de sua casa nesta zona da cidade multiplicam-se, ao ritmo dos prédios em obras, do avolumar do trânsito, da proliferação de novos comércios. Mas há quem não tenha abandonado o bairro. Um deles é um sem abrigo, que há vários anos passa o seu tempo na mesma soleira de porta. Louro, de olhos claros e estatura muito elevada, sem parecer fisicamente degradado, o homem poderia passar por um turista nórdico, um dos muitos que se passeiam agora pela Rua da Escola Politécnica, se não fosse usar o mesmo anorak castanho informe no Verão ou no Inverno, façam trinta graus ou menos cinco.

No chão, ao seu lado, um velho boné voltado ao contrário recolhe as moedas dos passantes, que ele não se dá sequer ao trabalho de interpelar, uma vez que passa o tempo deitado a olhar para o ar, por vezes entregue a um solilóquio incompreensível, entredentes.

Habituei-me a apreciar a postura discreta deste homem, que se limita a estar no mesmo sítio ano após ano, não pedindo nada, não tendo comportamentos excêntricos, nem acumulando sujidades à sua volta. Mas, há pouco tempo, o seu comportamento mudou. Continua indiferente ao fluxo interminável de trânsito humano e automóvel, continua deitado no mesmo sítio, mas o silêncio discreto em que se mantinha começou agora a ser interrompido de vez em quando, por um grito: “Eu estou aqui”.

Parei na rua, da primeira vez que o ouvi, sentindo o coração apertado, com pena do homem. Atravessei a rua para lhe dar uma moeda, que ele agradeceu com um discreto aceno de cabeça, continuei a andar e, ainda ouvi outra vez o seu grito vibrante: “Eu estou aqui!”

Não será aquele grito o protesto de quem não se resigna a que o ignorem, a que passem por ele como se ele não tivesse existência, como acontece cada vez mais, numa rua onde o anonimato substituiu as solidariedades de vizinhança? Pareceu-me que sim, e também que nessa afirmação da sua pessoa, o sem abrigo mostra mais orgulho próprio e capacidade de resistência do que muitos dos velhos habitantes da Rua da Escola Politécnica, incapazes de gritar aos ouvidos dos senhorios: “Eu estou aqui”. Mesmo que tenham nascido ali, como a Avó Maria, há noventa anos.

Texto: Isabel Braga                 Imagens: Selima

 

  • Vasco Coelho
    Responder

    Só interessam as lojas históricas. Os moradores históricos não dão dinheiro a ganhar a ninguém

    • Mario Fernandes
      Responder

      Pelos vistos não só há mais de uma centena de lojas “históricas” como agora também há “moradores históricos”.

    • Vasco Coelho
      Responder

      Não percebeu. Ou não quis perceber. Tenha um bom dia

    • Rui
      Responder

      100% de acordo Vasco! Ainda que é imperativo preservar as lojas historicas….

  • António Rosa de Carvalho
    Responder

    Os efeitos da Turistificação de Lisboa
    Cada vez mais gente e menos lisboetas. Câmara entrega a gestão da habitação ao aluguer online de alojamento para férias

    ANTÓNIO SÉRGIO ROSA DE CARVALHO
    23 de Novembro de 2016, 9:45
    https://www.publico.pt/2016/11/23/local/noticia/os-efeitos-da-turistificacao-de-lisboa-1752237
    282
    PARTILHAS

    Fernando Medina não acompanha a Imprensa internacional. Se o fizesse, ter-se-ia apercebido de uma avalanche de notícias na Imprensa local de Nova Iorque e de várias cidades Europeias sobre os efeitos perversos conjugados e interactivos da Turistificação desenfreada, da Globalização desmedida e da Gentrificaçào galopante na vida quotidiana dos habitantes locais nestas cidades.

    Um clamor profundo, uma agitação permanente de insatisfação e um desejo urgente e imperativo de mudança, de regulamentos, de fiscalização e de liderança por parte dos habitantes, ameaça traduzir-se em consequências políticas, e faz acordar os autarcas.

    Temos ouvido sobre as situações em Barcelona e Berlim e das condições impostas à AIRBNB que vão desde a proibição total na capital alemã até à imposição de um rigoroso regulamento na cidade da Catalunha.

    Numa longa luta do Municipal com a Airbnb [aluguer de alojamento para férias], Nova Iorque quer agora proibir o aluguer de alojamentos através da AIRBNB por um período inferior a 30 dias. Medida destinada a proteger a cidade dos efeitos perversos das estadias curtas / low cost do turismo barato, massificado, predador e desinteressante. Densidade intensa de ocupação do espaço físico sem interesse económico e mais valias financeiras, a não ser, para os estabelecimentos também eles “predadores” do comércio tradicional, ou seja, “comes e bebes” e “quinquilharia” pseudoturística em dezenas de lojas asiáticas e afins.

    A 6 de Outubro, o “Guardian” publicou um conjunto de três artigos sobre a interligação destes temas, tendo um deles sido dedicado à relação de Amsterdão com a AIRBNB.

    Embora Amsterdão tenha imposto um regulamento claro à Airbnb, ocupação máxima de 60 dias por ano e o máximo de quatro pessoas por edifício, os efeitos sociais de descaracterização dos bairros têm sido devastadores. O investimento especulativo junto à forte subida do preço da habitação (também no aluguer a “expats” do mundo empresarial ) está a expulsar progressivamente os habitantes locais, transformando os bairros em plataformas rotativas e contínuas de “idas e vindas” de forasteiros híper individualizados e indiferentes aos locais, e a transformar os antigos bairros em locais alienados onde ninguém se conhece e onde reina o anonimato.

    Amsterdão tem fiscalizado intensamente a ocupação através da Airbnb mas é confrontada com a recusa pela própria Airbnb de fornecimento de dados. Num espaço limitado fisicamente como a pitoresca Amsterdão, a invasão turística low-cost / aluguer Airbnb, está a levar a efeitos explosivos no trânsito, no comércio local onde pululam as lojas de vocação turística e de souvenirs e está a provocar uma avalanche de insatisfação traduzida em irritação ou animosidade explícita para com o turismo.

    De tal forma que, muito recentemente, a autarquia fez um discurso explícito inteiramente dedicado a estes temas, onde anunciou uma atitude de exigência e fiscalização ainda mais rigorosa para com a Airbnb, medidas legislativas em conjunto com Haia que tornem possível a escolha do tipo de lojas a instalar em cada rua e uma atitude nítida de selecção do tipo de turismo, numa definição e escolha dirigida à clara diferenciação entre o turismo desejável e indesejável.

    Numa entrevista publicada a 18 de Janeiro no PÚBLICO, o Director Ibérico da Airbnb anunciava orgulhoso: “A evolução em 2015 face ao ano anterior foi de 65%. Portugal está no 11.º lugar mundial em termos de anúncios na Airbnb, num ranking liderado pelos EUA. A Airbnb captou um milhão de pessoas em 2015.”

    Orgulhoso, e claro, satisfeito. A Airbnb não está sujeita a qualquer tipo de regulamento, exigência ou fiscalização em Portugal. Mais. A AIRBNB colabora com a Autarquia e o Governo, de forma a que os impostos sejam cobrados ao Alojamento Local. Estes aumentaram.

    Mas os efeitos devastadores são ignorados ou mesmo negados por Fernando Medina que se tem mostrado irónico ou furtivo sobre estes problemas fundamentais para o presente e o futuro estratégico da cidade de Lisboa.

    Que este se torne o tema fundamental de discussão de todas as forças políticas em direcção às eleições autárquicas, é um imperativo. Não se trata de cor política, mas de um tema Universal de Ecologia Urbana e de equilíbrio salutar no organismo vivo que constitui uma verdadeira cidade.

    A Turistificação desenfreada, a Globalização desmedida e a Gentrificação galopante estão a matar as cidades.

    Historiador de Arquitectura

  • Mario Fernandes
    Responder

    Coitada da Avó Maria que gostava tanto de viver no Príncipe Real. Eu por acaso também. E aposto que os seus vizinhos de Benfica, que também só veem betão à sua volta, também gostariam de viver no Príncipe Real. Tanto idoso em Benfica que gostava de ter vistas de rio… vamos tirar toda a gente de Benfica e de Telheiras, vamos todos para o Príncipe Real. Eu também me contento com o Chiado. Já vivo em Lisboa há alguns anos, já sou histórico.

    • Vasco Coelho
      Responder

      Não leu o artigo. Ou não percebeu. Ou não quis perceber.

    • Maria Marreiros
      Responder

      Só demonstra insensibilidade. Deve estar bem “encostado” na vida. Se chegar aos 90 e o “deportarem” para longe de onde viveu toda a sua vida – ou para um “lar” de idosos, então aí sim, exprima o seu sarcasmo.

    • João Fernandes
      Responder

      Que tiro ao lado este seu comentário … e os outros todos neste artigo !

  • Michael Woods
    Responder

    Só os moradores podem travar isto, assinem a petição: “http://moraremlisboa.org/”

  • Andre Lopes
    Responder

    É surreal ver essas situações quando um grande volume de predios em lisboa estão devolutos e parados no tempo… parados a espera que renda a venda…. e se nao caem entretanto. O mercado imobiliário em lisboa está entregue aos tubarões que tudo fazem. Deveria haver uma entidade que desse um eficaz apoio a esse grupo frágil de moradores, que um dia seremos nós…

  • Carla Lino
    Responder

    “E depois, acabam-se as marchas? Não fica ninguém no Bairro…”(palavras ouvidas ontem num telejornal ditas por uma moradora da Mouraria) . E agora pergunto eu, será que os Turistas quererão vir para Lisboa para só verem Turistas? E comprar artesanato Made in China ou Bangladesh? E quando passarmos de moda? Fica uma cidade deserta!
    Lisboa está FEIA! (é só a minha opinião…)

  • Margarida Noronha
    Responder

    Sabe que mais? o que vejo acontecer aqui, na Madragoa, é precisamente o que narra…e não é um bairro chique. Lisboa foi de novo tomada de assalto!!!…e já agora — Sabe de quem se preocupe e possa fazer alguma coisa para afastar esses abutres que não olham a meios para desalojar as pessoas seduzindo-as com quantias irrisórias para essas empresas? Daqui a uns anos quantos lisboetas haverá, daqueles aqui ‘nascidos e criados’?

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