Família da Bica com ordem de despejo de prédio que é de paróquia de Coimbra

REPORTAGEM
Daniel Toledo

Texto

URBANISMO

Misericórdia

3 Dezembro, 2018

A 24 de Outubro, Ami Pereira, com uma filha de 10 anos, teve de enfrentar uma realidade com que tantas vezes se tinha deparado na comunicação social. Desta vez, havia-lhes calhado a elas: o seu senhorio não queria renovar o contrato e Ami e a criança deviam abandonar a sua casa num prazo máximo de seis meses. É um caso mais entre os milhares que têm ocorrido desde que o fluxo de investimento internacional se introduziu no mercado imobiliário de Lisboa. Neste caso, porém, o facto de o seu edifício e os imóveis adjacentes serem propriedade da Paróquia de Colmeal, em Góis, distrito de Coimbra, torna-o mais peculiar: a Igreja parece estar a tirar partido da actual dinâmica do mercado das casas e a lucrar com a especulação imobiliária.

Ami Pereira (1974, Funchal) vive há 15 anos na Rua de Horta Seca, 44, na zona de Bica. Sem dúvida, um dos epicentros da bolha imobiliária que está a tornar cada vez mais difícil a vida de muita gente na capital. É extremamente árduo, para não dizer impossível, encontrar um apartamento acessível em toda aquela zona, mas também se revela bastante difícil manter a casa, ainda que se esteja ali a viver há já cinco, dez ou mesmo 15 anos.

 

Em concreto, o seu edifício, assim como os números 42 e 46 da mesma rua, são propriedade da Fábrica Paroquial da Igreja da Freguesia de Colmeal, concelho de Góis, pertencente à Diocese de Coimbra. A O Corvo, Ami relata como recebeu o primeiro aviso de não renovação contratual. “A notificação de não renovação do contrato recebi-a por carta, e dizia que tinha que sair no dia 30 de Abril de 2019, seis meses (depois). Pensei que não era justo. Sou mãe solteira e este edifício pertence à Igreja. E a Igreja deveria demonstrar uma bondade cristã e todas essas coisas”, relata Ami Pereira, sem deixar de evidenciar uma certa ironia.

A Paroquia de Colmeal não só é proprietária dos três edifícios na Rua da Horta Seca, como também de outros três edifícios na Rua da Amendoeira, no bairro do Castelo, em concreto dos números 3, 5 e 7. Mas aqui, no bairro da Bica, uma outra inquilina, Filipa Andrade, já tinha sido notificada de que teria de sair por motivos não renovação. Ao mesmo tempo, Ami desencadeou uma batalha legal para que, como primeiro passo, lhe reconheçam que, segundo estabelece o seu contrato, o senhorio deveria tê-la informado da não renovação com um ano de antecedência, e não seis meses.

 

Por agora, Ami debate-se nessa querela jurídica, mas a sua intenção é reverter a situação e conseguir manter-se naquela que considera a sua casa. Na verdade, a primeira coisa que fez, mal acabou de receber a recusa do senhorio em renovar o seu contrato, foi rumar a Coimbra para falar com o responsável da Paróquia, o padre Pedro Jorge Silva Simões. Juntamente com a sua amiga e, até agora, vizinha Filipa, foi aquela cidade em busca de, pelo menos, alguma atenção por parte do proprietário. “Recebeu-me muito bem”, relata Ami, referindo-se ao padre Pedro. “Sempre com muita pena de mim, dizendo que não queria estar no meu lugar, que era muito triste o que me estavam a fazer, mas que ele não tinha nenhum poder para fazer nada”.

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A paróquia é ainda dona dos números 42 e 46 da mesma rua

De acordo com Ami e Filipa, o padre Pedro assegurou-lhes que era uma decisão do seu advogado (“Os advogados são todos advogados do Diabo”, ter-lhes-á desabafado o religioso), que actuava na qualidade de procurador da Paróquia, isto é, com total autonomia para decidir sobre o destino das propriedades que a Paróquia do Colmeal tem em Lisboa. No entanto, O Corvo teve acesso ao documento enviado em 24 de Outubro deste ano, tanto para Ami Pereira como para Filipa Andrade, em que o padre Pedro aparece claramente como receptor das procurações, neste caso representando a Fábrica da Igreja Paroquial de Colmeal: “representada pelo Rvmo. Sr. Padre Dr. Pedro Jorge Silva Simões, contribuinte fiscal nº (…), a quem confere os poderes suficientes para com livre e geral administração civil, reger, gerir os prédios urbanos, dela outorgante, situados na Rua da Amendoeira, nºs 3, 5, e 7 e Rua da Horta Seca, nºs 42, 44, e 46 em Lisboa. E, em relação aos mesmos prédios urbanos, para dar de arrendamento, no todo ou em parte, pelos prazos, rendas e condições que entender convenientes, receber rendas, passar recibos no Portal das Finanças, registrar, renovar, prorrogar ou rescindir os respectivos contratos”.


 

O documento está datado de 2 de abril de 2018. E apesar de pedidos reiterados tanto à Paroquia, como ao padre Pedro e ao representante legal de ambos em Lisboa, o advogado Luís Lucas Laires, O Corvo não pôde confirmar ou desmentir este particular. Assim, parece haver um claro desacordo entre as palavras do padre Pedro e a situação legal de Ami, atestada por toda a documentação a  que tivemos acesso.

 

Filipa Andrade, também em declarações a O Corvo, continua o relato daquela reunião nas instalações da Paróquia do Colmeal. “(O padre Pedro) recebeu-nos muito bem, foi extremadamente simpático e, na minha opinião, extremadamente cínico, porque, quando conseguimos falar com ele, a primeira coisa que nos disse era que nós fazíamos alojamento local. Eu disse-lhe que não o fazíamos, e ele perguntou-me: E como é que provam?”. Segundo Ami e Filipa, o padre Pedro assegurava que, se o suposto procurador, Luís Lucas Laires, tivesse decidido não renovar o contrato, teria que ser porque elas estavam a fazer alojamento local.

 

De facto, em Maio deste ano, o padre Pedro, juntamente com Lucas Laires e outra mulher (que nenhuma das duas inquilinas conseguiu identificar), apresentaram-se na Rua da Horta Seca para entrar nas casas e observar o estado em que se encontravam. Ami e Filipa asseguram que acharam estranho o facto de que se apresentassem sem prévio aviso, ao meio-dia, quando normalmente as pessoas estão a trabalhar. Mas, por coincidência, ambas encontravam-se nas suas casas. As duas afirmam que não estavam a fazer alojamento local.

 

Em concreto, Ami encontrava-se com a sua filha de 10 anos, e suspeita que a intenção dos visitantes era encontrar turistas dentro dos apartamentos para assim justificar a não renovação – ou até, directamente, a suspensão – dos contratos de arrendamento. Em todo o caso, surpreende que os senhorios, ainda que supostamente sabendo que o mais provável era que não fossem renovar os contratos, e encontrando ainda Ami a residir com a sua filha, não as tenham avisado dessa possibilidade.

 

No caso de Filipa Andrade, a inquilina afirma que tentou em diferentes ocasiões dialogar com a paróquia, para saber se era possível estabelecer um novo valor de renda, mais elevado, permitindo assim ficar a viver na casa que a viu crescer. Sempre recebeu negativas sem nenhuma razão aparente. Filipa conta a O Corvo que, na sua opinião, “isto vai para alojamento local, para uma guest house que queira ficar com todo o edifício” ou para algum outro uso com o qual possam receber uma renda superior aos 609€ por mês que paga Ami Pereira e os 675€ que pagava Filipa Andrade pelo seu T2+1. O Corvo não conseguiu, porém, confirmar esta suspeita.

 

 

As suspeitas de Filipa são apoiadas também no facto de que, segundo o testamento através do qual o proprietário original, José Pinto, deixou em herança à paróquia os três edifícios (assim como os três da Rua da Amendoeira), no ano de 1997, o imóvel não podia ser vendido no futuro, e as rendas tinham que ser usadas para manutenção dos edifícios, primeiro, e para financiar as obras da Igreja Paroquial de Colmeal. Esta cláusula em particular foi comunicada a ambas as inquilinas, em diferentes ocasiões, ao longo dos anos pela própria paróquia. Também pode ser confirmado no Registo Predial, no qual aparecem as avaliações tributárias de ambas as operações: 37.755.880 escudos (cerca de 188.000€) no caso da Rua da Horta Seca, e 25.007.287 escudos (cerca de 124.000€) no caso da Rua da Amendoeira.

 

Dá-se o caso de que a Fábrica Paroquial da Igreja da Freguesia do Colmeal recebeu, não apenas benefícios fiscais como instituição religiosa, por parte do Estado – no último dos quais, a que teve acesso O Corvo, no ano fiscal de 2017, de 11.367€ -, mas também ajudas para as mencionadas obras na Igreja do Colmeal. Em concreto, uma verba de 45.470€, de um orçamento total de 90.940€, para arranjar a Igreja e alguns edifícios adjacentes, aprovada em Abril de 2017 no âmbito do Programa Equipamentos Urbanos de Utilização Colectiva.

 

Numa avaliação geral, só o edifício situado no número 44 da Rua da Horta Seca deveria facturar em rendas, antes de descontados os impostos, cerca de 30.000 euros anuais. Ainda haveria que adicionar as rendas dos números 42 e 46 da mesma rua e as dos números 3, 5, e 7 da Rua da Amendoeira. O Corvo deslocou-se a esta rua para conhecer a situação das famílias que ali vivem. Uma inquilina do número 7, de nome Joana (nome fictício), assegurou a O Corvo que ali não tinham recebido nenhuma notificação por parte dos proprietários, mas que, por casualidade, nesse mesmo dia, lhe havia sido comunicada uma subida da renda mensal de 220€ para 230€.

 

O que O Corvo pôde constatar no local é que o referido edifício estava em condições não recomendáveis de habitabilidade. Tanto assim é que, segundo relata Ami Pereira, o padre Pedro comentou na conversa que com ela manteve que tinha visitado os imóveis da Rua da Amendoeira e que, quando entrou, estava com tanto medo do estado das paredes e das escadas, que imediatamente saiu de lá. “Ele disse-me que, quando chegou, as paredes estavam cheias de rachaduras e que entrou, mas assim que o fez, sentiu vontade de ir embora”. Ainda assim, continuam a viver ali quatro famílias portuguesas e outras tantas famílias de cidadãos indianos.

 

Filipa Andrade tinha como prazo último para entregar as chaves do seu apartamento, no qual a sua tia viveu mais de trinta anos (ainda que Filipa tenha tido que renovar o contrato em 2007), o dia 30 de Novembro. Já Ami Pereira, todavia, continua a sua luta por manter a casa em que vive com a sua filha. Mas isso não será fácil. O seu único interlocutor válido parece ser Luís Lucas Laires, mas a comunicação com o mesmo tem-se revelado quase impossível.

 

“É muito difícil falar com ele, está sempre no tribunal ou sempre ocupado”, diz Ami. “Eu já escrevi duas cartas para o advogado, a primeira carta ele respondeu dizendo que, com as novas concessões, ele só tinha que me dar 120 dias. Estou a refutar isso e (a afirmar) que ele tinha que me enviar uma carta com um ano de antecedência, nem antes, nem depois. Mas ele enviou com seis meses. Já enviei uma segunda carta dizendo isso, que a sua interpretação da lei não está correcta e que no meu contrato não diz que deve ser regida pela nova lei. Porque, e isso até o meu advogado mo garante, o contrato tem que dizê-lo expressamente. A segunda carta ainda não recebeu resposta”, diz.

 

O Corvo tentou entrar em contacto tanto com o padre Pedro Jorge Silva Simões, como com a própria Paróquia de Colmeal e o advogado Luís Lucas Laires. No primeiro caso, o próprio padre Pedro declarou expressamente que não tinha nada a dizer a respeito deste assunto. No caso da Paróquia e de Lucas Laires, foi impossível estabelecer qualquer comunicação, apesar das repetidas tentativas.

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