Livro com ilustrações de “urban sketchers” revela o interior das lojas históricas de Lisboa

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João Morales

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CULTURA

Cidade de Lisboa

6 Novembro, 2018

Alguns são centenários. Quando se abre a porta de um dos emblemáticos estabelecimentos comerciais desta cidade, há fantasmas que reclamam a nossa atenção. O livro Lojas Históricas de Lisboa, com textos de Miguel de Sepúlveda Velloso e Paulo Ferrero, e ilustrações dos Urban Sketchers Portugal, que havia sido concebido em 2017, foi lançado este ano, após a realização de uma campanha de crowdfunding. Folhear estas páginas é entrar na alma de algumas das casas comerciais mais emblemáticas da capital.

O tenor italiano Beniamino Gigli (1890-1957) fez várias temporadas em Lisboa e frequentava o comércio mais afamado da primeira metade do séc. XX em Lisboa. Um desses locais é a Ourivesaria da Moda, na Rua da Prata, onde distribuía bilhetes para o São Carlos entre os funcionários. Mas fazia mais: «não se importava de se sentar numa cadeira da loja e de nos cantar canções populares italianas, tais como o “Sole Mio”», conta Jorge Araújo, cujas memórias mais antigas no estabelecimento remontam a quando era uma criança de oito ou nove anos e ajudava na caixa, pela Páscoa e pelo Natal.

 

Esta curiosa história é uma das várias que dão tom ao livro Lojas Históricas de Lisboa, um trabalho promovido pelo Círculo das Lojas de Carácter e Tradição de Lisboa, com textos de Miguel de Sepúlveda Velloso e Paulo Ferrero, para os magníficos desenhos do colectivo Urban Sketchers Portugal. A edição ficou a cargo da Zest Books, com diversos livros publicados em torno de Lisboa, da sua memória, mas também das suas novas facetas. A obra havia ficado pronta em meados de 2017, mas apenas acabou por ser publicada este ano, no decurso de um processo de financiamento através de crowdfunding .

Os episódios sucedem-se. Nos anos 80, a Manteigaria Silva, loja emblemática na Rua Dom Antão de Almada, recebeu um senhor americano, de grande bigode e chapéu de palha. Ao longo da conversa, nem sempre fluida por ser mantida em inglês, vem-se a descobrir que, além de rapidamente conquistar a condição de melhor cliente do mês, o estrangeiro em visita era um cientista da NASA que, aliás, conhecia pormenorizadamente os produtos que estava a escolher.

 

Os desenhos que ocupam uma parte considerável destas páginas são esboços coloridos repletos de romantismo, aquarelas sentidas que exprimem a nostalgia destes espaços e convocam dias em que eles eram o palco principal do comércio e do convívio alfacinha. Infelizmente, já nem todos estas portas permanecem abertas, como é o caso da Livraria Aillaud & Lellos, cuja assumida homenagem póstuma fica expressa no livro com uma simbólica cruz e a data de encerramento. Em grande parte, este ocaso é fruto do aumento exponencial que as rendas no centro de Lisboa conheceram nos anos mais recentes.


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São 37 os estabelecimentos incluídos nesta obra

O turismo descobriu Lisboa, a cidade enfeitiçou-se pela incursão de excursões e andarilhos, empreendedores e reformados estrangeiros. Longe, muito longe, ficaram os versos afamados pela voz de Amália Rodrigues: «Lisboa não sejas francesa/ Com toda a certeza/ Não vais ser feliz/ Lisboa, que ideia daninha/ Vaidosa, alfacinha,/ Casar com Paris/ Lisboa, tens cá namorados/ Que dizem, coitados,/ Com as almas na voz/ Lisboa, não sejas francesa/ Tu és portuguesa/ Tu és só pra nós».

 

No total, são 37 espaços que vale a pena descobrir ou reencontrar, pela mão de talentosos artistas e pelas histórias dos comerciantes de diferentes idades que, diariamente, dão a cara por este património histórico da cidade.

 

O espaço da Ginjinha Sem Rival & Eduardino pode ser diminuto, mas a quantidade de histórias e personagens que a este estabelecimento estão associadas é incontável. «Relembro com muito carinho o meu avô referir que, enquanto criança, muito humilde, a Amália Rodrigues frequentemente visitava a Ginjinha para vender limões e, de um modo quase mítico, contar a história de como o Eduardo, palhaço que actuava no Coliseu dos Recreios, estava na origem do licor “Eduardino”, isto ainda no tempo do meu bisavô, provavelmente nos primeiros anos do séc. XX», recorda Nuno Gonçalves, ao balcão deste espaço único, ícone de muitas décadas na Rua das Portas de Santo Antão.

 

É deste cruzar entre tempos, desta troca de memórias e anseios, que se vai fazendo uma cidade e o seu pulsar quotidiano. Por isso, é fácil entender como, quando falamos do comércio tradicional e das suas figuras e aventuras, estamos muito para além da Economia, da História, da Sociologia, até. Lançamos alicerces num território onírico e fértil que vagueia entre a imaginação e as recordações, entre os factos e o seu rasto, pistas mais que essenciais para definir caminhos futuros percorridos, acima de tudo – e sem demérito para a inovação e revitalização – pela consciência e pela coerência.

 

Lojas Históricas de Lisboa
Miguel de Sepúlveda Velloso e Paulo Ferrero (textos) e Urban Sketchers Portugal (ilustrações)

Zest Books

112 págs.

12,50 euros

 

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