Feira da Luz anima Carnide até ao fim do mês e traz novos artesãos preocupados com o meio ambiente

REPORTAGEM
Sofia Cristino

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VIDA NA CIDADE

Carnide

5 Setembro, 2018

A feira mais antiga de Lisboa, em Carnide, já começou. E apesar de estar a decorrer até ao último dia de Setembro, há quem lá vá todos os dias. Uns, porque não querem perder nenhuma oportunidade de comprarem artigos incomuns e, outros, só para provarem o caldo verde ou comer um courato. Alguns dos feirantes mais antigos estão optimistas e há quem diga que já vendeu mais no primeiro fim-de-semana da feira do que no ano passado. Já os vendedores que se estreiam na feira parecem mais cépticos. “A reacção das pessoas é boa, mas não compram. Ainda preferem a contrafacção das tendas de venda de ténis e dão pouco valor ao que é feito à mão e é português”, queixa-se um comerciante, que vende artigos feitos a partir de paus e paletes de madeira.

“Sinto as mãos mesmo macias e até o cheiro que fica no guardanapo, depois de as limpar, faz-me lembrar os meus avós, é muito agradável. Esta feira é uma raridade e traz muitas recordações”, diz Abel Coelho, depois de lavar as mãos com o tradicional sabão macaco, na Feira da Luz, a decorrer até ao último dia de Setembro. O visitante está a experimentar o artigo de higiene num lavatório improvisado por um dos feirantes. É difícil ficar indiferente a esta tenda de venda, onde sacos de um quilo e meio de alhos surgem ao lado de sabonetes. Mas o vendedor e fabricante de sabonetes tem uma explicação.

 

 

“A combinação faz sentido porque sujamos muito as mãos ao descascar os alhos e é preciso um bom sabão para desaparecer aquele cheiro que se entranha na pele”, explica Joaquim Manuel, 57 anos. O sabão é feito à base de azeite e produtos vegetais e o comerciante não partilha o segredo da receita, o que leva alguns a olharem com desconfiança para o artigo. “As pessoas ainda preferem os produtos químicos, mas quem experimenta volta a comprar. Só as pessoas com mais cultura e informadas é que compram”, diz, enquanto duas amigas adquirem sabonetes pela terceira vez.

Ao final da tarde de um dia de semana, os visitantes vão percorrendo as bancas ainda timidamente. Ao cair da noite, porém, o Largo da Luz enche-se de pessoas, regateiam-se preços em voz alta e prova-se os petiscos dos comes e bebes, em tascas que com o avançar das horas vão ganhando filas intermináveis. Muitos vão até ali só pelas iguarias e, outros, porque faz parte de uma tradição familiar com décadas. “Vimos sempre comer caldo verde, porque sabe mesmo a couve, daquele tipo que já não se encontra em lado nenhum. A bifana e o pão com chouriço também já fazem parte da ementa, é um ritual”, diz Alexandra Coelho, mulher de Abel Coelho.

 

José Correia, 66 anos, reside em Carnide e diz estar todo o ano à espera do início da feira centenária, onde já vai há quatro décadas. “Moro mesmo aqui ao lado, por isso venho todos os dias. Quando não compro uma peça de loiça ou uma manta, vou comer um courato, isso é certo. Isto é mais para quem tem vagar”, observa o morador, enquanto tenta decidir-se entre duas tigelas de barro com peixes pintados a azul e verde. As tendas de venda de cestaria, artefactos de madeira e loiça de cerâmica são as mais tradicionais, e onde se encontram os artigos mais incomuns. A banca da tapeçaria é outra das mais procuradas e muitos dos que lá passam comentam que já é difícil encontrar mantas de trapo e tapetes de Arraiolos.

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É ao princípio da noite que a animação aumenta na centenária feira de Carnide

Chico Djompe, 38 anos, natural da Guiné-Bissau, está a visitar a feira pela terceira vez, com a irmã, que dentro de poucos dias terá de voltar ao país de origem. “Quando a minha irmã vem cá de férias, já é hábito virmos, nunca perdemos a feira. Há peças que são muito difíceis de encontrar”, conta Chico Djompe, enquanto escolhe azulejos com mensagens escritas. “Vou levar este, que diz ‘se vens por bem podes entrar’, para pôr à entrada de casa. São tão bonitos e nunca sei onde comprá-los”, comenta, enquanto empilha nos braços dezenas de azulejos com recados distintos. Ana Paula Pires, 46 anos, vendedora de loiça na feira há dez anos, conta que são, essencialmente, os africanos que compram. “Os portugueses compram umas tigelas, canecas e uns pratos, os artigos mais baratos. Os africanos compram os jarrões e as peças decorativas, ajudam mais ao negócio”, explica a feirante.


 

 

No lago do Jardim da Luz, vão surgindo crianças em barcos insufláveis, acompanhadas por adultos a darem aos remos, enquanto que as mais velhas saltam num parque de insufláveis, aproveitando os últimos dias de férias. Há quem prefira os carrinhos de choque e os carrosséis, mas estas diversões ganham mais popularidade à noite, talvez pelas luzes que as tornam mais atractivas. O evento que leva milhares de pessoas à freguesia de Carnide, todos os anos, está no início e ainda é cedo para fazer um balanço. Mas já se vão partilhando impressões.

 

Isabel Ferreira, 58 anos, está entusiasmada. “Só os primeiros dois dias já foram melhores que o ano passado. No sábado, foi uma enchente, vendi muitas tigelas de caldo de verde, taças para toucinho do céu, bilhas de água e mealheiros”, conta. Há doze anos a participar na feira do Largo da Luz, diz ainda que tem visto “muitos brasileiros”, ao contrário de anos anteriores. “Só não vi turistas, no fim-de-semana talvez apareçam”, antecipa.

 

 

Ao lado, Jorge Melo, 58 anos, vendedor de cestaria e artefactos de madeira, diz que os utensílios para a cozinha, como as colheres de pau, são os artigos com mais saída. Explica ainda que já se começa a ver muitas pessoas à procura de cestos de vime. “Antigamente, os cestos ou as alcofas eram utilizados para se ir às compras ao mercado, agora levam-nos para a praia, acho que está na moda”, conta, entre risos. O feirante vai enumerando as vendas já feitas, enquanto conta os novos usos dados aos produtos. “Um casal comprou dois cavalos de madeira, que depois vão pintar ao gosto deles, para oferecerem aos netos. Antes, compravam os cavalos já pintados, agora só querem sem cor. Como esta zona está perto de Telheiras, onde há um poder de compra superior, acaba-se por vender”, explica Jorge Melo. O comerciante na Feira da Luz há 40 anos conta ainda que a loiça começou a ser vendida na feira, há cerca de cem anos, sendo as peças transportadas em burros desde Mafra.

 

A Feira da Luz, com mais de 550 anos, é organizada, desde 2014, pela Junta de Freguesia de Carnide, que, no ano passado, foi considerada uma “Eco-freguesia”. Este ano, a ecologia é, por isso, um dos temas do certame. Sérgio Estrela, 34 anos, pela primeira vez na feira, quer dar a conhecer o negócio de artigos feitos a partir de paus, que encontra na praia, e paletes de madeira. A marca criada pelo próprio, com apenas alguns meses, já dá nas vistas pela originalidade dos produtos –  candeeiros feitos a partir de troncos de árvores, cadernos com capas de madeira personalizadas, suportes para telemóveis e amplificadores de som -, mas ainda são poucos os que compram. “A reacção das pessoas é boa, mas não compram. Ainda preferem a contrafacção das tendas de venda de ténis e dão pouco valor ao que é feito à mão e é português”, diz o artesão, que ambiciona dedicar-se exclusivamente a este negócio. “Sou rectificador mecânico, mas sempre gostei muito de trabalhar em madeira e o que é lixo para uns, para outros é um tesouro. Já fazemos, também, convites para casamentos”, conta.

 

 

Já Sandra Rodrigues, 47 anos, no terceiro ano consecutivo na Feira da Luz, já faz do artesanato a sua actividade principal. Vende bonecos em lã e tecido, porta-chaves, carteiras, presépios, bijuteria, entre outros produtos feitos fabricados pela própria. Os presépios e os bonecos em forma de polvo são os mais procurados. “Ao início, não entendia porque me pediam para fazer tantos polvos, mas depois percebi. Os tentáculos ajudam a acalmar os bebés prematuros porque os associam ao cordão umbilical da mãe. Os presépios são muito procurados por coleccionadores”, explica. Sandra demora oito horas a fazer um polvo, que é vendido por valores entre os 6 e os 10 euros. “Não estou a contabilizar as horas de trabalho. Se as pessoas assim já não compram porque acham caro, imagino se fosse a ter em conta as horas”, desabafa.

 

Entre os corredores de bancas de venda de produtos artesanais e as roulottes de farturas, algodão doce e pipocas, ouvem-se conversas sobre os concertos dos próximos dias. A Feira da Luz recebe o projecto musical Cantigas do Festival e Lena d’Água, nos dias 7 e 8 de Setembro; Fado Lelé e Carapaus, Azeite & Alho, nos dias 14 e 15 de Setembro; Toy e Carolina Deslandes, nos dias 21 e 22 de Setembro e Luiz Caracol, Aurea e Clã, no último fim-de-semana. Actuarão, ainda, grupos locais, como ranchos folclóricos e, pela primeira vez, realizar-se-á um encontro de cante alentejano.

 

 

A Feira da Luz termina com a centenária procissão de Nossa Senhora da Luz, mas, até lá, ainda há muito para ver e experimentar. Até porque, “senão gostarem a gente troca”, anuncia no megafone o vendedor de peluches gigantes, tentando atrair as crianças que ainda preferem os balões de lítio, que baloiçam ao ritmo das letras das músicas das diversões, que nos próximos dias enchem as ruas de Carnide.

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