Lisboa, muito barulho para pouca acção

por • 30 Dezembro, 2013 • Actualidade, SlideshowComentários (2)1404

A Câmara de Lisboa colocou a proposta do Plano de Acção de Ruído em consulta pública. A mudança do tipo de pavimento nas ruas e outras medidas poderão ajudar a reduzir o barulho na cidade, mas condicionalismos financeiros poderão atirar a solução deste problema ambiental para as próximas décadas.

 

Texto: Luís Filipe Sebastião          Fotografia: Quercus

 

Alcântara é a zona de Lisboa mais afectada pela poluição sonora, segundo se conclui na proposta do Plano de Acção de Ruído elaborado pela autarquia. O documento, em consulta pública até ao final de Janeiro, estima que cerca de 33 mil pessoas sejam expostas a níveis de ruído acima de valores legais. Enquanto isso, a associação ambientalista Quercus prepara-se para apresentar uma queixa nas instâncias europeias pela demora na aplicação da directiva comunitária que regula a preservação do ambiente acústico.

 

O executivo municipal aprovou, em 27 de Novembro, a abertura de consulta pública da proposta de Plano de Acção de Ruído (PAR) de Lisboa. O documento subscrito pelos vereadores Manuel Salgado e José Sá Fernandes estava datado de 9 de Julho, mas só agora foi apresentado à vereação. A consulta pública – prevista para Outubro – acabou assim adiada para entre 12 de Dezembro e 28 de Janeiro. Numa sessão pública, a 9 de Janeiro, será apresentada a proposta do PAR, no Centro de Informação Urbana de Lisboa, no Picoas Plaza.

 

Na página criada no site da autarquia explica-se que o plano de acção visa a promoção da qualidade de vida dos habitantes, “diminuindo o incómodo e os problemas de saúde associados ao ruído”; a definição de prioridades para a redução da população exposta a níveis sonoros acima do regulamentado, e a identificação de “zonas tranquilas promovendo estratégias de intervenção dirigidas à sua manutenção e extensão.” A proposta consagra ainda a concretização de planos com mecanismos de revisão e instrumentos de avaliação, bem como a articulação de políticas com entidades gestoras do tráfego rodoviário, ferroviário e aéreo.

 

O mapa do ruído da cidade, incluído no plano director municipal (PDM), reporta-se a 2008. A Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo exigiu a elaboração do PAR, no âmbito da revisão do PDM, mas a autarquia deixou expirar o prazo para a sua conclusão e submissão à Agência Portuguesa de Ambiente. Uma lacuna que, já em Agosto de 2012, levou a deputada municipal Cláudia Madeira, do Partido Ecologista “Os Verdes”, a questionar na assembleia municipal os responsáveis camarários sobre em que ponto estava a elaboração do PAR.

 

O território do município está classificado, no PDM, como zona mista (habitação e serviços). Os níveis sonoros de ruído ambiente exterior estão limitados a 65 dB, para o período Lden (diurno-entardecer-nocturno), relativo às 24 horas do dia, e 55 dB no parâmetro Ln (nocturno), entre as 23h e as 7h00. A identificação de 29 áreas de intervenção teve por base as zonas em desconformidade com estes valores.

 

Segundo a proposta do PAR, cerca de 20 por cento da área do concelho está acima do valor limite para o indicador Lden (12% está 5 dB acima e 8% supera em 10 dB). A desconformidade é superior no indicador Ln, com cerca de 41% (18% está 5 dB acima do limite e 23% ultrapassa em 10 dB). Assim, as zonas que apresentam valores de ruído ambiente superiores a 60 e 70 dB, para Ln e Lden, correspondem a áreas próximas de vias de trânsito rodoviário intenso. A ferrovia possui uma expressão muito localizada, ao passo que o tráfego aéreo influi nas imediações do aeroporto e rotas de aproximação. Outras fontes pontuais referem-se à concentração de actividades de diversão nocturna, principalmente Bairro Alto, Cais do Sodré, docas de Alcântara e Parque das Nações.

 

Levando em conta os 544.800 habitantes (Censos 2011), em termos de exposição aos diferentes níveis de ruído para todas as fontes, constata-se que cerca de 18% da população está sujeita a níveis superiores aos limites regulamentares para o Lden e perto de 23% para o indicador Ln. A principal fonte de ruído na cidade tem origem no tráfego rodoviário, principalmente das grandes vias, como o Eixo Norte-Sul, a Segunda Circular, a Circular Regional Interior de Lisboa, a Auto-estrada 5 (Lisboa-Cascais) e a Radial de Benfica.

 

“Factor ambiental esquecido”

 

“As pessoas não têm muito a percepção directa dos impactos do ruído”, salienta Mafalda Sousa, da associação ambientalista Quercus. A especialista em ruído nota que este problema “tem sido um factor ambiental muito esquecido.” A associação, em parceria com a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e a Federação Europeia dos Transportes e Ambiente, realizou, entre Outubro e Dezembro de 2012, medições em vários pontos críticos da capital.

 

O sonómetro registou os níveis mais elevados de ruído, no período diurno (7h-20h), onde predomina o tráfego rodoviário (Segunda Circular/Eixo Norte-Sul e Marquês de Pombal/Baixa) e aeroportuário (Campo Grande/Av. Brasil). A média do Lden atingiu os 82,3 dB em Telheiras/Segunda Circular (quase cem vezes acima do permitido). Na mesma zona a média do Ln foi de 75,8 dB. Na Avenida do Brasil, o nível máximo de ruído medido foi de 101,3 dB (devido ao efeito combinado do ruído rodoviário e aéreo). Valor preocupante levando em conta o limiar de dor para o ouvido humano (120 dB). No entanto, o pico mais elevado foi medido na Avenida Fontes Pereira de Melo, chegando aos 106,1 dB. Uma responsabilidade que deve ser partilhada entre a autarquia e as empresas gestoras de infra-estruturas de transporte.

 

Segundo dados da Agência Portuguesa do Ambiente, apenas está concluído um plano de acção do ruído, relativo à A22 (Portimão-Faro). Num inquérito realizado pela Quercus, a meia centena de residentes ou trabalhadores em Lisboa, a maioria das queixas incidiu no ruído provocado pelo tráfego rodoviário (automóveis, motociclos, autocarros, veículos de emergência) e aeroportuário. A associação, perante o incumprimento da Directiva sobre o Ruído Ambiente, na aprovação de mapas estratégicos e planos de acção, está a ultimar uma queixa contra o Estado português na Comissão Europeia. A entrega, adianta Mafalda Sousa, deve ocorrer durante o primeiro trimestre de 2014.

 

Ruído apontado a Alcântara

 

A proposta do Plano de Acção do Ruído de Lisboa identifica 29 zonas prioritárias de intervenção. A Gago Coutinho/Almirante Reis possui o maior número de residentes (8866), seguida da Estrada de Benfica (8787) e Segunda Circular (8158). Nos três casos a origem do ruído é rodoviário. Na Calçada de Carriche/Alameda das Linhas de Torres (7904) a fonte de ruído é viária e aérea, enquanto nas Avenidas Novas (5214) se verifica o efeito cumulativo da circulação automóvel e dos comboios. A estas duas fontes de ruído juntam os aviões sobre a Avenida de Roma (3457). Na Avenida da Liberdade e envolvente poente (2810), os problemas residem no trânsito e pontuais (animação nocturna).

 

A zona de Alcântara (3669) é, no entanto, afectada por todas as fontes de ruído: rodoviário, ferroviário, aéreo e pontuais. O tecido urbano, de construções antigas e recentes, sofre com a proximidade do tabuleiro da Ponte 25 de Abril, a rota de aproximação ao aeroporto, o acesso viário ao centro da cidade e a animação das Docas. A zona está abrangida pelo Plano de Urbanização Alcântara. As propostas desenhadas no plano apontam para uma redução de 56% para os habitantes expostos a valores de Lden superiores a 70 dB e de 67% para residentes expostos a mais de 60 dB no indicador Ln. Uma diminuição que poderá ser conseguida com a mudança do piso para outro mais poroso, com características de absorção sonora, e pela redução da velocidade máxima de circulação para 30 km/h nas vias secundárias interiores da zona.

 

O reforço do isolamento de fachadas; instalação de barreiras acústicas; incentivo à utilização de transportes públicos; limitação à circulação de pesados; redução de velocidade na proximidade de escolas e hospitais, e controlo de velocidade são outras medidas apontadas no plano. As vantagens residem na prevenção de doenças cardiovasculares e alguns distúrbios psicológicos (reacções de stress, distúrbios do sono) provocados pelo ruído. Ou seja, além dos benefícios para as famílias, a administração central deverá poupar em custos na saúde e apoios sociais.

 

A zona de Alcântara é considerada prioritária, por apresentar um rácio custo-benefício significativamente positivo e contribuir para uma redução muito interessante de pessoas expostas a níveis de ruído ilegais. Porém, considerando o avultado custo do total das acções do PAR, cerca de nove milhões de euros, são estabelecidas três fases, cada uma por cinco anos. Na primeira fase serão intervencionadas 24 zonas, com redução da população exposta a níveis de ruído superiores ao limite legal de cerca de 79% e com um investimento de um terço do total.

 

A Segunda Circular corresponde à segunda fase, reduzindo 13% a população exposta a níveis de ruído superiores ao limite legal. Na última fase prevê-se a intervenção em quatro zonas, com redução de apenas 8% da população exposta e um terço do investimento total. “Das cerca de 33 mil pessoas expostas a níveis de ruído acima do limite legal, as medidas quantificadas no PAR apenas contribuem para uma redução de aproximadamente 5500 pessoas para gamas de ruído abaixo daquele limite”, lê-se no documento.

 

Sensibilização, precisa-se

 

Paulo Ferrero, do movimento Cidadania Lisboa, preconiza “o direito ao silêncio que já está consagrado em muitas cidades da Europa” e lamenta a demora na elaboração do plano de acção. Lisboa, proclama, “é muito barulhenta”, principalmente devido ao trânsito rodoviário, mas também pela animação nocturna nas zonas do Bairro Alto e do Cais do Sodré, mas “mais pelo ruído que fazem na rua”.

 

Entre as medidas para reduzir o ruído, o activista aponta como prioridade “a educação e fazer cumprir a lei e disciplinar as obras na via pública.” Assim como “fiscalização a sério e prevenção.” Para isso, as entidades oficiais também devem dar o exemplo. O movimento tem recebido nos últimos dias queixas de cidadãos contra o ruído, “até altas horas”, provocado por uma feira natalícia no Largo Trindade Coelho, promovido pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e apoiada pela câmara.

 

O presidente da direcção da Sociedade Portuguesa de Acústica (SPA), Jorge Patrício, explica a O Corvo que Lisboa, em geral, no que toca ao ruído ambiente exterior, não se diferencia muito de outras grandes cidades portuguesas ou de países como Espanha, França e Itália. O cenário lisboeta só será diferente, considera o especialista, quando comparado com cidades do Norte da Europa. Para este facto não será estranho uma diferente cultura das entidades oficiais e dos cidadãos, quer em termos regulamentares, quer em matéria de civismo, por exemplo ao volante. A SPA tem por finalidade promover e incentivar o conhecimento, investigação e aplicações da acústica, incluindo entre os seus membros especialistas do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, do Instituto Superior Técnico e de outras organizações académicas e profissionais no sector.

 

“Há zonas de Lisboa que são mais ruidosas do que outras”, confirma Jorge Patrício, adiantando que uma melhoria profunda só se consegue com uma sensibilização a longo prazo da comunidade para o problema do ruído. O que inclui quem o provoca, mas também de quem sofre os seus efeitos. “Das reclamações apresentadas na Provedoria de Justiça relacionadas com o Ambiente, 50 por cento são sobre ruído”, avança o engenheiro da SPA.

 

A situação tem melhorado mais ao nível da regulamentação acústica dos edifícios, por se tratar de uma área relacionada com bens transaccionáveis, mas não tanto no que respeita ao ruído ambiente. Tanto mais que, salienta Jorge Patrício, para se notar uma alteração significativa nos valores do ruído ambiente seria preciso verificar-se uma redução para metade do trânsito rodoviário na cidade. Apesar dos números oficiais de circulação automóvel apontarem para a circulação de menos veículos particulares nas estradas, devido à crise, a diminuição ainda é insuficiente para se fazer notar em termos de melhoria ambiental no plano acústico.

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2 Responses to Lisboa, muito barulho para pouca acção

  1. “Importa fazer a distinção entre mapas de ruído (artigo 7.º, n.º 1, do RGR) e
    mapas estratégicos de ruído35 (artigo 1.º, 2.º e 6.º do Decreto-lei n.º 146/2006, e
    artigo 7.º, n.º6, do RGR). Os mapas de ruído constituem instrumentos
    fundamentais para informação do ambiente sonoro existente, ou previsto, com o
    principal objetivo de contextualizar a preparação dos instrumentos de
    ordenamento do território. Já os mapas estratégicos de ruído, previstos no
    Decreto-lei n.º 146/2006, consubstanciam a obrigatoriedade de recolha e de
    disponibilização de informação ao público relativa aos níveis sonoros do ruído
    ambiente, de acordo com métodos de avaliação harmonizados ao nível da União
    Europeia, e fundamentam os planos de ação.
    Esta obrigatoriedade incide sobre as grandes aglomerações populacionais e
    sobre as grandes infraestruturas de transporte rodoviário, ferroviário e aéreo”(in Inquérito sobre o Ruído, Provedoria de Justiça).

  2. JC diz:

    O Hospital SAMS nos Olivais cumpre a lei do ruido ?

    Se cumpre, então a lei está mal feita e não defende os cidadãos,

    se não cumpre, então a lei é letra morta e campanhas destas não passam de propaganda desonesta.