Os moradores da Vila Neves e dos prédios vizinhos, na Rua Maria Pia, temem que as traseiras do Cemitério dos Prazeres desabem. Há até quem já durma no sofá da sala e tenha medo de entrar no próprio quarto. De cada vez que chove mais forte, é um aperto de coração. A câmara promete uma “mega-empreitada” ainda este ano. Até lá, reza-se para que não aconteça o mesmo que em 1975, quando três pessoas morreram.
Texto: Samuel Alemão Fotografias: Carla Rosado
O sofá da sala de estar tem sido a cama de Indenhe Cá desde aquela noite de meados de Fevereiro. “O barulho era muito. Foi um grande susto”, recorda o guineense de 54 anos, junto à janela do seu quarto, agora apenas a servir de guarda-roupa. Algumas estão amontoadas sobre o colchão assente no chão, no qual dormia até há bem pouco tempo. As pedras de diversas dimensões espalhadas pelas chapas de zinco do vizinho armazém de uma empresa de construção, mesmo ao lado, atestam o sucedido durante a intempérie. As fortes chuvas provocaram mais uma derrocada na escarpa que delimita as traseiras do Cemitério dos Prazeres sobre a Vila Neves, no 92 da Rua Maria Pia. Desde então, Indenhe e o filho, operários construção civil desempregados, deixaram de entrar numa das divisões da casa.
Eles, como as outras 26 famílias, têm medo que o cemitério lhes desabe sobre a cabeça. As pedras têm caído com regularidade. E com uma dimensão cada vez maior. Razão para que quem ali vive tema pela sua segurança. O problema está longe de ser novidade. As memórias dos danos causados noutras épocas, aliás, motivam muita da preocupação presente. Em 18 de Março de 1975, um deslizamento de terras e pedras de grande dimensão provocou a morte a três pessoas. O acidente motivou, nessa altura, a realização de obras por parte da Câmara Municipal de Lisboa. Datam dessa época a construção do muro de contenção existente no sopé da encosta e a colocação de uma rede metálica sobre a mesma – a qual cedeu aos rigores deste inverno e, por isso, deixou de surtir efeito.
“Foi nessa altura que se fez ali a última intervenção de jeito. De resto, tem-se andado a brincar com a vida das pessoas que lá vivem”, diz Rui Alves Carvalho, advogado do senhorio. “O que é que a câmara está à espera para fazer uma intervenção? É necessário que haja uma tragédia e morra alguém?”, questionou o jurista na última reunião descentralizada do executivo municipal, a 5 de Março, destinada a ouvir os fregueses de Campolide, Estrela e Campo de Ourique – freguesia na qual a Vila Neves se situa. A ocasião foi aproveitada pela autarquia para anunciar uma “intervenção de fundo” na arriba instável, no final do ano. “Será uma mega-empreitada, que pensamos que vai resolver de vez este problema”, garante o vereador das Obras, Jorge Máximo.
Os efeitos da derrocada de 2010 ainda estão à vista nos números 26 e 27.
Os moradores e o proprietário da vila, mas também quem vive nos prédios ao lado, não parecem, contudo, muito tranquilizados por tais promessas. Até porque a urgência nascida da instabilidade geológica que sobre eles paira não se coaduna com os prazos e os procedimentos burocráticos desencadeados pela câmara municipal. “Aquilo que ali está é um perigo terrível. Algum dia, vem tudo por aí abaixo e é uma desgraça”, profetiza João Vigário, 57 anos, morador na Vila Neves desde os 15. Ele é um daqueles que, apesar de tudo, até têm alguma sorte, pois a sua casa é o número 10 do arruamento privado. Por isso, faz parte dos habitantes que estão o mais afastados possível da zona de impacto de uma eventual grande derrocada.
A acontecer, ela atingiria, sobretudo, a outra fila de casas, situadas no lado direito deste pátio. É o caso do ocupante do número 23. Henrique Melo, 47 anos, é taxista e vive ali há cerca de ano e meio. Veio da bem mais central Rua Rodrigo da Fonseca, “por causa da lei das rendas”, depois de o senhorio lhe ter proposto um aumento de “vinte vezes mais” do que estava a pagar. Agora desembolsa 200 euros por um modesto apartamento, partilhado com o gato, o cão e o cunhado – que era casado com a sua irmã, entretanto vitimada por uma cancro fulminante. “Entre, e não olhe para as coisas, que isto é casa de pobre”, diz, quando nos convida a ir até às traseiras. O sol do princípio de tarde não penetra nesta zona de sombra. A ladeira pedregosa impede-o. “Se tiver que morrer, por causa de uma derrocada, estou pronto. Nem penso muito nisto”, diz Henrique, numa espécie de fatalismo expurgado de emoção.
Henrique Melo, fotografado junto ao logradouro da sua casa. O perigo vem de cima.
E há razões para temer o pior. Em Março de 2010, um deslizamento fez com que pedregulhos e terra entrassem pelas duas casas situadas numa das extremidades deste bloco de habitações. Os números 26 e o 27 foram atingidos, sofrendo avultados estragos. A avalanche vinda da arriba do cemitério destruiu a cozinha de uma das casas. No momento do incidente, esse apartamento tinha o seu interior ocupado por uma família, com duas crianças. Apesar do susto, ninguém sofreu danos físicos. As duas fracções nunca mais foram ocupadas, tendo essa família mudado para casa de parentes, em Queluz. As pedras que entraram pelo apartamento ainda lá estão. Tal como estão mobílias e pertences diversos, como os brinquedos dos miúdos, aparentando ter sido deixados para trás numa fuga apressada.
A vida decorre com normalidade na Vila Neves, mas sempre de coração nas mãos.
Em suspenso encontra-se também o ressarcimento do proprietário da Vila Neves. “Estamos à espera de ser indemnizados pela câmara”, diz Pedro Pereira, 52 anos, que herdou o conjunto habitacional do sogro e do tio. E, com ele, o conjunto de problemas conexos. “Há aqui pessoas bastante idosas e quase todas têm poucas posses. Além disso, a localização deste bairro acaba por não ser convidativa. No fundo, acabamos por ter mais problemas do que proveitos”, assegura, fazendo notar que a consciência da fragilidade social daquela população o impede de aumentar as rendas a algumas pessoas a pagarem 20 euros de renda. A folha de pagamentos, todavia, apresenta valores bastante diversificados. Henrique Melo, o taxista, por exemplo, paga dez vezes mais.
Mas Indenhe Cá, o único a viver no primerio andar de uma moradia autónoma ao bloco de apartamentos, paga 250 euros. E agora apenas dorme no sofá da pequena sala, que também é a entrada da sua casa – onde a arrumação não é muita e os sons da RDP África saídos de um rádio sobre um banco servem de inusual banda-sonora às imagens mudas da televisão. Indenhe tem receio que o quarto seja atingido por uma derrocada. Sobretudo nos dias de chuva, vive com o coração nas mãos. Uma situação que vem complicar ainda mais a vida a este carpinteiro da construção civil sem trabalho. O filho, pintor do mesmo ramo, passa pelo mesmo calvário. Ambos sem subsídio de desemprego.
Emília Rodrigues, junto à barreira construída após o fatal deslizamento de 1975.
Pedro Pereira, o senhorio, faz contas à vida. Além dos dois apartamentos devolutos por razões de segurança, diz ter “duas ou três pessoas com rendas em atraso”. E se a zona já não é muito atrativa em termos comerciais, pela mera proximidade ao atingo Casal Ventoso, a instabilidade geológica que sobre a Vila Neves impende contribui para piorar o cenário. “Temos tido uma clara desvalorização da propriedade”, admite Pedro. “Isto já se arrasta há tanto tempo, que já nem sei o que pensar. Cada vez que há uma derrocada, ficamos muito preocupados. As pessoas não estão livres que venha a aqui a acontecer uma tragédia”, diz. No imaginário dos moradores da vila está não apenas a fatal derrocada de 1975, como um caso insólito, ocorrido em meados do século passado, quando um caixão com um corpo caiu lá de cima.
Mas a preocupação está longe de se cingir à Vila Neves. Que o digam os vizinhos dos prédios imediatamente abaixo, como o 86 A. No rés-do-chão, Hernâni Rodrigues, 64, e a Emília Rodrigues, 63, parecem ter-se resignado a viver sob a permanente ameaça de que algo volumoso e pesado lhes caia em cima. Mais que as pedras ou parte da vedação murada do cemitério, o que este casal teme a sério é o enorme eucalipto que sobre eles se debruça do alto da falésia, mesmo no limite da sustentabilidade. Vergado pelo próprio peso, tem envergadura suficiente para causar muitos estragos no prédio. É uma árvore gigante, pensamos, quando a observamos cá de baixo, a partir do quintal da família Rodrigues, que está muito mais encostado à arriba do que a Vila Neves.
Ali em cima do morro, está o Cemitério dos Prazeres, de onde não caíram só caixões.
A frequência desse mesmo quintal foi desaconselhada pelos bombeiros, que ali acorreram na tal noite de Fevereiro em que Idenhe Cá acordou sobressaltado. “Foi cá um estrondo, com as pedras a cairem aqui ao lado. Nem imagina o susto que apanhámos”, recorda Emília, ainda atemorizada pelo ruído ensurdecedor que as pedras fizeram ao embaterem no telheiro de zinco do precário armazém, situado paredes-meias. A Junta de Freguesia de Campo de Ourique foi, nessa altura, avisada do sucedido. Hernâni critica o estado a que a encosta nas traseiras da sua casa chegou, sobretudo a actual situação da árvore. “Se tivessem [a câmara] feito a limpeza por dentro do cemitério, isto não acontecia. Se o eucalito se parte, é uma chatice”, afirma.
Perante as acusações de “inércia” e de “causar prejuízos”, feitas publicamente pelo advogado do proprietário da Vila Neves, a Câmara Municipal de Lisboa promete uma “mega-empreitada, para resolver este problema”. O vereador Jorge Máximo garante que a autarquia tem concluído o projecto para ir a concurso público em Abril, com os trabalhos orçados em 1,3 milhões de euros, ao abrigo do Programa de Investimento Prioritário em Acções de Reabilitação Urbana (PIPARU). A obra, cujo processo de adjudicação deverá estar concluído em Setembro ou Outubro, tentará estabilizar a encosta, numa extensão de 550 metros. Será uma “operação tecnicamente complexa”, diz o vereador Jorge Máximo, e fará uso de betão injectado, da colocação de novos sistemas de drenagem e da aplicação de malha de alta resistência. Até lá, resta aos moradores esperar que nada de mau aconteça.
Nos apartamentos da Vila Neves, vivem famílias com muitas crianças e idosos.
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Impressionante!
Viver literalmente com a morte sobre a cabeça.
Não conhecia esta vila de Lisboa, haverá outras que não conheço, e é pena conhecê-la nestes moldes.
Aguardemos o início da intervenção camarária e os desenvolvimentos da mesma, certamente que o Corvo acompanhará este processo.
Este caso é paradigmático do estado em que muitas habitações e espaços urbanos que lhes são conexos se encontram, na cidade de Lisboa, uma cidade com que não é fácil de lidar, muito sobretudo à custa da sua orografia, como de resto aqui se constata.
Muito boa a reportagem, a escrita e a fotográfica.
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