Unidos contra a transformação da Baixa em “bairro dos hotéis”

REPORTAGEM
Samuel Alemão

Texto & Fotografia

URBANISMO

Santa Maria Maior

24 Fevereiro, 2014


Um grupo de activistas urbanos juntou-se para denunciar o excesso de hotéis no coração de Lisboa. Mas também criticar a enorme degradação de muitos edifícios e o fim do comércio tradicional. Os fenómenos estão ligados entre si, dizem, e relacionados com um forte processo especulativo. E com a Lei das Rendas. A Câmara Municipal não fica bem na fotografia.

O grupo detém-se, algo estupefacto, junto ao quarteirão em que a Rua de Santa Justa se cruza com a Rua da Prata. De um lado, está um hotel aberto há pouco tempo, do outro, um gradeamento colocado pela polícia municipal delimitando uma área onde jazem os destroços de uma derrocada da parte superior do edifício, ocorrida há pouco mais de uma semana. O cenário funciona como exemplo do que, por estes dias, sucede na Baixa Pombalina – por muitos vista como vítima de um processo de acelerada descaracterização social e arquitectónica. Fecham as lojas e os serviços de sempre, enquanto floresce um “parque turístico”, dominado por alojamento e comércio sem grande vínculo ao local. Os habitantes da cidade dão lugar a magotes de turistas.

A mutação em curso, por alguns vista como um sintoma positivo de regeneração de uma área vital da capital, é, porém, posta em causa por um número crescente de pessoas. Como é o caso do recém-formado Observatório das Transformações XXXX da Cidade de Lisboa, que, na tarde de sábado, promoveu uma acção de sensibilização para o aumento acelerado das unidades hoteleiras ou equiparadas nesta zona. Teme-se a “descaracterização”, resultante de mudanças a decorrerem a “ritmo vertiginoso”. “Contar estrelas: quantos hotéis há na Baixa?” foi o mote deste passeio-percurso, que se propôs realizar a “contagem exaustiva do número de hotéis que já existem” e dos que “estão para vir”. A iniciativa contou com cerca de três dezenas de pessoas, divididas por dois grupos.

A acção, que também visou “produzir conhecimento, face à falta de informação clara sobre a cidade”, convidava os participantes a fazerem a contagem e o mapeamento das unidade hoteleiras dos quarteirões pombalinos. Para ajudar a tal tarefa, a organização distribuiu uma folha A3 com uma representação cartográfica simplificada da Baixa, onde deveriam ser assinalados os estabelecimentos deste género, existentes e planeados, com recurso a um marcador, também oferecido. “A ideia é subverter um pouco o mapa turístico”, explicava Marco Balesteros, designer gráfico e membro do colectivo, no começo da iniciativa, na Praça da Figueira. Os membros deste novo fórum são de várias áreas profissionais e querem envolver-se mais ainda no debate sobre o futuro da cidade.

As mutações a que Lisboa está sujeita, neste momento, são aceleradas e muito diversificadas. Daí o incomum nome do grupo: Observatório das Transformações XXXX da Cidade de Lisboa. O XXXX visa, precisamente, dar relevo à faceta multifacetada das alterações em curso na cidade. “Queremos chamar a atenção para o que está a suceder. Muitas vezes, só nos apercebemos das coisas quando elas já aconteceram”, afirmou, logo no início deste passeio e acção de contagem de hotéis, Ana Maria, uma das organizadoras. Na verdade, eles até estavam já enumerados e mapeados numa outra folha, também entregue ao participantes.

Entre hotéis, hostels, pensões e apartamentos turísticos, a funcionar ou planeados, o observatório conta 76 unidades – tendo como base o cruzamento de de informações disponíveis na net e um artigo publicado na Visão, a 19 de Setembro de 2013. O seu autor, Pedro Marques Silva, serviu de cicerone no percurso. Na referida folha, diz-se que estão a funcionar 13 hotéis na Baixa, estando “aprovados para construção” 16. Aos hotéis juntam-se 44 “hostels, pensões e apartamentos”.

Durante o percurso, foram comentados diversos casos concretos do fenómeno. A começar logo pelo quarteirão onde está instalada a Pastelaria Suíça, no qual foi notada grande degradação e desleixo. Nos pisos acima do rés-do-chão, podem ver-se diversas janelas abertas há muito tempo. Nunca são fechadas. O quadro é recorrente na Baixa. E tal não é inocente. “Tem como objectivo contribuir para a aceleração do processo de degradação do edifício, para assim poder forçar a câmara a autorizar obras profundas”, concordaram diversos participantes. Outros dos aspectos salientados foi o facto de a grande maioria destes imóveis estar nas mãos de fundos imobiliários controlados por bancos e seguradoras.

Esse facto, associado ao mecanismo de despejo criado pela alteração recente da Lei do Arrendamento Urbano, em vigor desde Novembro de 2012, foi amplamente analisado no debate ocorrido após o passeio, nas instalações do Centro Em Movimento (CEM), na Rua dos Fanqueiros. Entre a assistência, ouviu-se muitas vezes falar na dramática mudança de cenário promovida pela alteração legislativa, sobretudo através da prorrogativa concedida aos senhorios de despejarem os inquilinos, caso as partes não cheguem a acordo sobre a actualização da renda. O fenómeno terá especial relevância estatística nos arrendamentos comerciais.

Apesar de ser consensual que a degradação da Baixa Pombalina é um processo “que não é novo, já vem de trás”, a maioria dos que participaram no debate relevou o papel decisivo da “lei das rendas” no processo de “expulsão” dos que estavam neste território há muito. E na sua consequente, e invariável, substituição por negócios associados ao turismo. Neste processo, o município não foi isentado de responsabilidades. Pelo contrário. “A Câmara Municipal de Lisboa é completamente cúmplice com a Lei das Rendas, apesar do que o António Costa e o PS andaram a dizer na campanha eleitoral ”, ouviu-se, a dada altura.

Especialmente criticado foi o vereador com o pelouro do Urbanismo. “O Manuel Salgado podia ter um papel importante, o de travar isto, mas não quer”, acrescentou-se. A maioria dos intervenientes na discussão frisou a aparente inoperacionalidade e falta de eficácia do Plano de Pormenor de Salvaguarda da Baixa Pombalina, aprovado há apenas três anos.

A revolução não será apenas de uso comercial e demográfico, passa muito pelas alterações arquitetónicas e construtivas. “As primeiras intervenções de reabilitação de edifícios destes quarteirões tinham como regra a preservação da estrutura pombalina em gaiola (em madeira). Hoje, do que vai sendo feito, temos muitas dúvidas que conservem as características originais”, salientou ao Corvo o casal de arquitectos Sérgio Antunes e Sofia Couto, que têm o atelier Auróra Arquitectos. “Além disso, estão a fazer-se alterações profundas, ao introduzirem-se corredores em edifícios que não os tinham. Perde-se, assim, essa memória de uma vivência pré-funcionalista”, lamentou Sérgio.

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