Crónica

 

Eram quase oito da noite, pouca gente passeava entre os pavilhões, a visão da cidade com o Tejo ao fundo era deslumbrante e a melancolia do fim de tarde enchia a Feira do Livro de Lisboa. Mas, aqui e ali, emergiam pequenos focos de animação, principalmente em volta dos locais de comes e bebes, onde a maioria dos produtos se apresenta com nomes em inglês, “wraps” crus e petiscos próprios para “trucks”, seja lá o que for que isto significa, em termos gastronómicos.

 

Numa das ruas, um pequeno grupo conversava animado, com muita risota à mistura. Atenção, parece uma voz conhecida! Era Catarina Martins, do BE, cercada de amigos, que trocava piadas amistosas com Adolfo Mesquita Nunes, do CDS, revelando que, entre eles, existe uma cumplicidade que os duelos verbais que travam no Parlamento não deixam adivinhar. O tom sério da política tinha sido dado, momentos antes, por Francisco Louçã, que, de olhos no chão e ar compenetrado, acabara de sair do recinto da feira, a passo apressado, com um saco cheio de livros.

 

A ajudar à melancolia do final da tarde, dois jovens entoavam velhos êxitos do nacional cançonetismo, adaptados aos tempos modernos, com acompanhamento à viola. “Oiçam, oiçam, o tempo mudou e ela não voltou”, entoavam, perante uma assistência escassa.

 

Algumas pessoas olhavam para os livros expostos, haviam mesmo quem os manuseasse e perguntasse o preço, mas não se via muita gente a comprar.

 

Engano, puro engano, a avaliar pelas palavras entusiásticas do editor da Antígona, Luís Oliveira, que, de boné vermelho na cabeça, do alto dos seus mais de 70 anos, continua um rebelde, com créditos firmados.

 

“Os livros estão a vender-se, já fiz dez vezes mais dinheiro nestes dias do que no ano passado”, garantia ele, enquanto me mete na mão o catálogo que editou para a Feira do Livro, e que, na contracapa, ostenta o lema da Antígona, o qual resume a forma que o seu editor tem de estar na profissão e na vida: “Uma conspiração permanente contra o mundo”. Não resisti a este ímpeto revolucionário e comprei-lhe um livro, “Discurso sobre a Servidão Voluntária”, de La Boétie.

 

A conversa com Luís Oliveira é sempre animada. “Sabes, passou por aqui um tipo, brasileiro, que me disse uma coisa que me deixou a pensar. Disse que ‘temos que nos libertar dos nossos libertadores‘. Não é fantástico? O que achas disto?!”.

 

Não sabia bem o que responder, dado que, chegada a esta altura da vida, não penso em libertar-me de nada, tudo aquilo que não me causa dor me faz falta, por isso penso que a minha época revolucionária ficou bem lá para trás.

 

Do outro lado do vale que separa as duas encostas do Parque Eduardo VII ocupadas pela Feira do Livro, nada de anarquia. Um grupinho de polícias, de cabeças juntas, observava qualquer coisa no pavilhão da PSP, onde o lugar de honra era ocupado por um livro intitulado “A Manutenção da Ordem Pública e Democracia”. Não me ocorreu, sequer, folhear a obra em questão, apenas pensei que em Lisboa há poucos polícias a patrulhar as ruas. Mais uma vez, tive a certeza de que os meus dias rebeldes tinham passado.

 

A Feira do Livro iria encher-se de gente, daí a pouco, uma vez passada a hora do jantar, garantiu-me alguém mais familiarizado que eu com os ritmos do evento. O Tejo azul, a paisagem deslumbrante iriam desaparecer, envolvidos pela escuridão, ofuscados pelas luzes. Saí do Parque Eduardo VII envolta num cheiro a fritos que fazia lembrar a Feira Popular. Lisboa, bela e viva, preparava-se para a noite.

 

Texto: Isabel Braga             Fotografia: Paula Ferreira

 

 

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