A arte urbana está a ser utilizada para resgatar o antigo Casal Ventoso à narrativa de exclusão e marginalidade
REPORTAGEM
Samuel Alemão
Texto
DR
Fotografia
VIDA NA CIDADE
Alcântara
Campo de Ourique
Estrela
29 Março, 2019
Durante quatro dias, o artista SMILE esteve a desenhar o rosto de uma miúda, na empena de um velho prédio da Quinta do Cabrinha. Pretende-se que funcione como reflexo dos sentimentos de esperança das crianças e dos jovens daquela zona da cidade. A obra, intitulada “Stay True”, junta-se ao mural colectivo, feito há duas semanas, na Quinta do Loureiro. A arte urbana está a ser utilizada para conferir ao antigo Casal Ventoso uma imagem diferente da que teima em prevalecer. Os problemas existem, é verdade, mas, como diz o artista 2CarryOn, “há mais coisas a acontecer no bairro”. A isto juntam-se as acções de pintura de paredes por parte de grupos de voluntários.
“Isto é um espectáculo, está muito bonito”. Ainda que os raios solares do final da manhã teimem em interporem-se ao que os olhos de Manuel Tó, 83 anos, namoram lá no alto da empena cega do prédio situado no início da Rua da Fábrica da Pólvora, não se revelam suficientemente fortes para estragar o momento. Com a mão esquerda sobre a fronte, servindo de pala para amainar a luminosidade excessiva – enquanto a direita segura o cajado -, o velho morador do Pátio do Cabrinha, situado nas traseiras, detém-se por instantes enquanto aprecia o trabalho que artista SMILE, alter ego de Ivo Santos, cria lá em cima, montado no topo da plataforma elevatória. “A ver se eles acabam isto até amanhã, como tinham dito. Vai ser difícil”, diz, antes de se pôr em marcha até à casa onde vive desde que casou, tinha então 26 anos. Os olhos da criança nascida da técnica de aerossol do street artist de 33 anos e com duas décadas de actividade criativa contemplam quem passa, mas também pedem que paremos para olhar de outra forma o antigo Casal Ventoso.
“É uma miúda e tem os punhos cerrados, onde se pode ler a inscrição “Stay True” . A criança é o que de mais puro existe. Escolhê-la funciona como um sinal de confiança, uma mensagem de esperança e de acreditar que podemos mantermo-nos fiéis aos nossos objectivos”, explica a O Corvo aquele que é um dos nomes mais prestigiados da arte urbana nacional, ao dar conta da génese da obra iniciada na segunda-feira (25 de Março) e que se previa estivesse concluída ao final da tarde desta quinta-feira (28 de Março). A intervenção plástica realizada no Bairro do Cabrinha, junto à Avenida de Ceuta, em Alcântara, assume-se como homenagem às crianças e jovens deste aglomerado urbano, herdeiro do bairro de muito má memória pela sua ligação ao tráfico e consumo de droga e à exclusão social. Realizada no âmbito do projecto Casal Ventoso Sempre, é financiada pelo programa municipal BIP/ZIP (Bairros e Zonas de Intervenção prioritária), sob coordenação da instituição Projecto Alkantara.
Marco Almeida (aka 2CarryOn) está a dinamizar a relação entre o Casal Ventoso e a arte urbana
A obra de SMILE insere-se num conjunto mais vasto de intervenções que têm vindo a ser realizadas – na próxima terça-feira (2 de Abril), das 14h às 18h, será a vez de estudantes do Instituto Superior de Ciência Sociais e Políticas participarem na pintura das paredes do bairro – , com o objectivo de “puxar para cima” toda uma comunidade que continua a ter dificuldades em se ver livre de uma certa má imagem. Um trabalho que, além do Cabrinha (Alcântara), tem incluído também a Quinta do Loureiro, freguesia de Campo de Ourique, mas deixado de fora o bairro da Avenida de Ceuta Sul, freguesia da Estrela – os três bairros onde foram realojados os moradores do antigo aglomerado degradado. Ainda há duas semanas, também integrada no Casal Ventoso Sempre, foi realizada na Quinta do Loureiro uma acção de larga escala de pintura de um grande mural colectivo, uma “hall of fame”, protagonizada por um conjunto de artistas urbanos e denominada “Vale Encantado”.
É todo um programa bem definido e que tenta competir no campeonato da atenção mediática com as notícias e os rumores que, com alguma regularidade, vão dando conta da persistência dos problemas de sempre na zona que deixou de ser Casal Ventoso há já duas décadas. A arte urbana funciona, pois, como um antídoto. “No Vale de Alcântara nunca se fez nada deste género”, diz a O Corvo Filipe Santos, coordenador do Projecto Alkantara, instituição com trabalho social desenvolvido no território desde o primeiro momento do processo de realojamento dos residentes daquela zona da capital. O mesmo responsável é, porém, lesto a admitir, sem rodeios, que a utilização da arte urbana como forma expurgar maus hábitos, incutir espírito de pertença e aumentar a auto-estima da comunidade foi copiada de outros locais. “Não inventámos nada. Este género de trabalho deu frutos noutros locais, por que não daria aqui?”, questiona. Tanto assim foi que, mobilizando moradores, sobretudo os mais jovens, se organizou uma visita de estudo à Quinta do Mocho, em Sacavém, concelho de Loures, para como funcionaram as intervenções de arte urbana naquele bairro.
A Quinta do Mocho foi, aliás, um dos bairros onde SMILE já deixou a sua marca – a par de outros aglomerados da Grande Lisboa também muitas vezes apelidados de “problemáticos”, como a Quinta da Fonte (Apelação, Loures) ou o Bairro da Torre (Cascais). Alguma propensão especial para trabalhar neste tipo de ambiente? “Calhou, foi coincidência. O graffiti começou em bairros deste género, marginalizados. Mas são trabalhos como este que me preenchem”, confessa o artista, que, antes de partir para a idealização do conceito por trás da obra intitulada “Stay True” – o tal dizer nos dedos da miúda representada na empena do prédio do Cabrinha –, ouviu os miúdos do bairro para saber o que pensam e que sentimentos gostariam de ver graficamente representados. “As crianças deste bairro, muitas vezes, crescem de uma forma que não é a mais saudável”, diz SMILE, reconhecendo que o facto de este ser um processo participativo ajuda a conferir um carácter muito particular à obra. “Tem um simbolismo muito grande”.
A existência no bairro do Cabrinha de uma criação que, se bem que podendo ser efémera –embora SMILE deseje que esta em particular “dure até a tinta se gastar e cair” -, pode ascender à categoria de obra de arte é motivo suficiente para a justificar. “Isto é bom por dois motivos essenciais. Antes de mais, os moradores ficam com algo que é seu e que consideram de qualidade. Mas, por outro lado, existe também uma maior abertura ao exterior, com a visita de gente interessada em ver este tipo de coisas”, diz Filipe Santos, que planeia já a realização de uma festa da arte urbana no bairro em Junho próximo. Os artistas, nacionais e internacionais, que vierem ficarão hospedados em casa de elementos da população sénior, “numa espécie de regime de alojamento local”, ajudando assim a combater a solidão destas pessoas. Mais uma maneira de utilizar esta forma de expressão como ferramenta de combate à exclusão social.
Afinal, a ideia é fazer acontecer coisas boas e não perder muito tempo com suposições, admite Marco Almeida, aliás “2CarryOn”, artista que tem trabalhado como mediador dos projectos de arte urbana na zona. “O Casal Ventoso vai estar sempre presente na mente das pessoas de fora como um território associado à toxicodependência, à marginalidade, ao crime e tudo o resto. Não vale a pena negar isso. Agora, há que partir para outra. Há mais coisas a acontecer no bairro”, diz o homem que tem feito a ponte entre as várias iniciativas relacionadas com a arte urbana ocorridas no âmbito do Casal Ventoso Sempre. Foi ele quem trouxe SMILE e quem coordenou o mural colectivo “Vale Encantado”. “Esta forma de expressão altera o espaço circundante. Faz a ligação entre a sociedade e aquilo que o artista quer comunicar”, explica. No caso da obra de SMILE, a mensagem é simples e pode ser traduzida desta forma: mantenham-se verdadeiros e longe de problemas.