Sede do Unidos da Glória, comprada por imobiliária “fantasma”, pode fechar e deixar idosos sem local de convívio

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Sofia Cristino

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VIDA NA CIDADE

Santo António

14 Janeiro, 2019

O Clube Futebol Unidos da Glória poderá ter de abandonar, nos próximos meses, a sede onde está há mais de 40 anos. O imóvel foi vendido a uma imobiliária, com actividades ligadas ao alojamento local, e os inquilinos foram informados, por carta, de que apenas passariam a fazer o pagamento para outra conta bancária. Se soubessem que o prédio ia ser adquirido, garantem, teriam exercido o direito de preferência. A Câmara Municipal de Lisboa (CML) fez, entretanto, uma vistoria ao edifício, por este apresentar sinais de insalubridade, e informou o clube que teria de sair para serem feitas obras. Ainda ninguém apareceu, contudo, para iniciar os trabalhos, nem o novo proprietário responde às tentativas de contacto dos inquilinos. O presidente da Junta de Freguesia de Santo António lamenta a situação, mas diz que não pode fazer nada para ajudar a associação, que, segundo o autarca, não tem planos de actividades e está em incumprimento com o estatuto das colectividades.

Alfredo Sousa, 66 anos, tem o olhar fixo, quase imóvel, no número 62 da Rua da Glória, sede da colectividade Clube Futebol Unidos da Glória, ali desde 1976. Passa lá muitos serões, há mais de quatro décadas, e, desde que vive sozinho, também é ali que janta, todos os dias. “Onde vocês têm os pés, pusemos nós os azulejos”, diz, cabisbaixo, apontado para o chão. Tal como Alfredo, alguns moradores do arruamento, paralelo à Avenida da Liberdade, encontraram na associação um sítio onde se sentem mais acompanhados. Mas poderá não ser por muito mais tempo.

 

O edifício onde está a Unidos da Glória foi comprado pela imobiliária Eagleplanet, a 6 de Julho de 2018, e, apesar desta empresa apenas ter comunicado à colectividade a mudança de senhorio e o número de identificação bancária (NIB) – não manifestando intenções de despejar o clube -, o presidente da Unidos da Glória, José Lopes, antevê o pior cenário. “Esta empresa foi fundada muito rapidamente para fazer negócio. Querem fazer alojamento local, de certeza. Nesta rua, fechou tudo e, o que há, é tudo arrendamento de curta duração. Não vão remodelar dois andares e deixar o nosso, não é esse o interesse deles”, receia. No portal da justiça, a Eagleplanet, Lda, fundada em Dezembro de 2017, surge como uma empresa de “compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para o mesmo fim”, mas também de arrendamento de bens imobiliários, alojamento mobilado para turistas e alojamento de curta duração.

Desde a recepção da missiva, as tentativas de contacto de José Lopes com a imobiliária têm sido em vão. “Quando recebi a carta, no Verão passado, fiquei receoso. Nunca esperei que o antigo senhorio, a Junta de Freguesia da Alpendorada (Marco de Canaveses), fizesse isto. Estava à espera de ser consultado, porque a nossa ideia sempre foi exercermos o direito de preferência sobre o imóvel”, diz José Lopes. Depois de conhecer o novo senhorio “fantasma” e “porque um problema nunca vem só”, explica o presidente da Unidos da Glória, o imóvel, onde a associação desenvolve actividades há 42 anos, foi alvo de uma vistoria e a colectividade terá de sair para se realizarem obras no prédio. Devido à dificuldade em falar com o novo senhorio, porém, José Lopes não sabe exactamente quando terá de abandonar o edifício. “No quintal, nas traseiras do prédio, existe muito lixo, há vários anos. Há quatro anos, quando ainda estava num estado que podíamos limpar, chegámos a pedir ao antigo proprietário para irmos lá fazer a limpeza, mas não nos deu a chave. O lixo foi crescendo e começou a entrar num restaurante, na rua de baixo, e chamaram a polícia para ver o que se passava”, conta José Lopes.

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O envelhecimento da população da zona levou ao esmorecer da actividade desportiva

A Câmara Municipal de Lisboa (CML), no passado dia 25 de Outubro, fiscalizou o edifício e conclui que este se encontra em más condições de segurança e salubridade. Ditou, por isso, que seria necessário “executar obras de conservação” e que as fracções do rés-do-chão, onde está sediada a Unidos da Glória, e a cave não deverão ser utilizados, enquanto não for feita a reparação. No auto de vistoria, a que O Corvo teve acesso, lê-se que os inquilinos têm 45 dias úteis para abandonarem as instalações e iniciarem-se os trabalhos, com uma duração estimada de sete meses. “O novo senhorio não nos diz nada, o nosso advogado tem tentado contactá-los e eles simplesmente não nos dizem nada. Vou meter uma acção em tribunal contra quem? Nem sei com quem estou a lidar”, queixa-se José Lopes. O presidente da colectividade diz ainda que a Junta de Freguesia de Santo António não tem tido interesse em ajudar o clube e critica mesmo a atitude da autarquia. “Há dois ou três anos, a junta começou a dizer que não há espaço para nós. Já que não nos ajudam, podiam deixar-nos estar no arraial de Santo António, mas também temos sido impedidos de participar”, queixa-se.


 

O Futebol Clube Unidos da Glória foi fundado em 1976, numa altura em que proliferavam muitas colectividades novas na capital. Esta teve várias equipas de futebol, mas os sócios foram morrendo e o “espírito desportivo” perdendo-se. Hoje, a colectividade é um espaço onde os 60 sócios, maioritariamente reformados e alguns desempregados, se reúnem ao final do dia e aos Domingos, para almoçar e conviver. Durante a semana, há também reclusos a fazerem trabalho comunitário. Ao fim-de-semana, realizam passeios de bicicleta por Monsanto, publicitados pela Junta de Freguesia de Santo António – o único apoio que dizem receber da autarquia -, e fazem torneios de sueca. “Não temos espaço, nem apoio financeiro, para mais actividades culturais”, lamenta José Lopes.

 

Com a pressão imobiliária, na zona mais cara de Lisboa, a freguesia de Santo António perdeu muitos moradores. Um cenário que também não ajudou à manutenção da vitalidade da colectividade. “Muita gente, que tinha aqui um quarto alugado, foi deslocalizada. Na Praça da Alegria, chegaram a trabalhar 500 pessoas, agora não trabalha nenhuma. Haverá 50 pessoas a trabalhar na zona, o que nos tem fechado numa concha”, desabafa o dirigente associativo.

 

 

A importância da colectividade na vida de quem a frequenta, todos os dias, percebe-se quando O Corvo questiona um dos sócios onde irá jantar, se esta fechar. “Isso não vai acontecer, não pode. Somos poucos, mas precisamos de um sítio para estarmos menos sozinhos. Estou cá desde aquela data, 1976”, diz Alfredo Sousa, ligado à colectividade desde a sua fundação, apontando para um quadro com o símbolo do clube. Vive quatro números ao lado da colectividade, num quarto, sozinho, e encontra ali alguma companhia. “Os hotéis são muito bons para quem os gere, mas para nós não. Perdemos os vizinhos e os amigos”, lamenta, emocionado. Outro dos primeiros sócios, Américo Malheiro, 71 anos, entra de rompante e, sem se sentar, cumprimenta rapidamente toda a gente. “Só venho aqui ver como estão e aliviar um bocadinho o stresse, mas vou para casa melhor”, conta.

 

José Manuel, 48 anos, foi um dos responsáveis por reerguer a colectividade, em 2012, quando o Unidos ameaçou encerrar pela primeira vez. “Este não é o meu bairro, não nasci aqui, mas quando vim morar para esta zona ganhei uma grande afinidade. É muito importante que se mantenham este tipo de associações. Quando cá cheguei, estava com dificuldades, ainda consegui levantar a equipa de futebol, infelizmente voltou a acabar”, diz José Manuel, responsável por confeccionar o jantar.

 

Na noite em que O Corvo foi ao espaço, a ementa escolhida foi rojões de carne de porco. Lina Rosária, 68 anos, aparece quase às 21h para jantar, quando regressa do trabalho. “A reforma não dá para tudo, ainda tenho de trabalhar por alguns anos. Venho muitas vezes aqui, pelos valores das refeições, mas também pelas pessoas. Hoje é só homens, mas ao Domingo até se juntam mulheres. E até discutimos futebol, é uma diversão”, conta, entusiasmada. Enquanto vai contando algumas peripécias, solta uma gargalhada de cada vez que o grupo de quatro jogadores de sueca, umas mesas à frente, dá um murro na mesa. “É sempre assim, há anos, mas também faz parte chatearem-se. As relações humanas são assim”, diz.

 

 

Tais valores não deverão, contudo, estar nos planos da empresa que agora adquiriu o imóvel. Embora tal seja difícil de confirmar, pois a Eagleplanet revela-se de contacto impossível e não dispõe de número de telefone conhecido. A morada da firma surge, no Portal da Justiça, como sendo no andar 7º A, no número 72, na Avenida 5 de Outubro, onde O Corvo se dirigiu na manhã de sexta-feira (11 de Janeiro). Neste sítio, porém, funciona agora uma empresa de serviços de engenharia, arquitectura e construção. O Corvo sabe que naquela morada nunca terá funcionado nenhuma empresa com o nome de Eagleplanet e que André Pereira da Silva Câmara, que surge no Portal da Justiça como gerente da imobiliária, já terá tido um escritório naquela morada, tendo-o abandonado no Verão passado – precisamente quando comprou o prédio da Rua da Glória.

 

O Corvo dirigiu-se, ainda, a uma outra morada, no 1º esquerdo, no número 56, na Avenida da República, que surge no Portal da Justiça como o local de trabalho de André da Câmara  – para onde ligou também várias vezes, sem sucesso. Tocando à campainha, e após várias tentativas, ninguém abriu a porta. Ali, funcionará uma sociedade de advogados, a Law Firm. O Corvo ligou ainda para o contacto telefónico da sociedade de advogados, mas o número não está atribuído.

 

 

O presidente da freguesia de Santo António, Vasco Morgado (PSD), contactado por O Corvo, diz que não se revê nas críticas da colectividade. “Não é verdade que não queremos ajudar. Até já fiz parte de uma equipa de futebol do Unidos da Glória, durante vários anos, e admiro muito a colectividade. Por muita vontade que tenha, porém, não posso ir contra o que está estipulado no registo legal das colectividades. Os estatutos do clube não estão a ser cumpridos, não fazem as assembleias obrigatórias e não têm um plano de actividades”, diz. O autarca diz ainda que só não convidou o clube para o arraial de Santo António, nos últimos dois anos, “para permitir a rotatividade de colectividades”. “Tem de haver lugar para todos e, todos os anos, vou convidando diferentes associações e clubes”, explica.

 

A Junta de Freguesia de Santo António está numa das zonas mais valorizadas de Lisboa, um factor que não ajuda à manutenção deste tipo de colectividades locais. “A própria junta anda sempre à procura de espaços, mas não encontramos. Queremos muito apoiar as colectividades, mas estamos na freguesia mais cara, e os interesses, hoje, são outros. Há prédios que são vendidos e revendidos e nem sabemos a quem. Da forma como as coisas estão, não podemos fazer nada”, garante.

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