Cada vez mais gente diz que há demasiado ruído em Lisboa mas não se conhece a real dimensão do problema

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Sofia Cristino

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AMBIENTE

Cidade de Lisboa

7 Janeiro, 2019

Cada vez mais pessoas reclamam dos transtornos causados pelo excesso de barulho e os seus impactos na saúde física e mental. No Areeiro, o “volume exagerado” das canções de Natal levou um morador a queixar-se, várias vezes, à junta de freguesia. Na Penha de França, o ruído de motas já mobilizou os habitantes através de uma petição. As histórias repetem-se por toda a cidade, principalmente em zonas de animação nocturna coincidentes com áreas residenciais, como o Bairro Alto. Apesar do Ministério do Ambiente ter recebido apenas dez reclamações relacionadas com o ruído, em 2018, a associação ambientalista Zero garante haver mais. Segundo a vice-presidente da Zero, as segundas principais queixas a chegar ao Ministério do Ambiente estão relacionadas com o ruído. A dirigente critica ainda a “má coordenação” entre organizações como a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e a Câmara Municipal de Lisboa (CML). “Empurram umas para as outras e as queixas continuam a circular”, critica.

Patrícia Santana, 41 anos, sente-se impotente perante o excesso de ruído na zona onde vive. “Desde que começaram as corridas de motas, não tenho descanso. Estou exausta, já não sei o que fazer”, desabafa. Quando, em 2006, foi viver para a Rua Engenheiro Simões, ao lado da Avenida Marechal Francisco da Costa Gomes, na freguesia da Penha de França, não imaginava o que a esperava. “Pensava que vinha para uma zona relativamente calma, mas, à noite, isto é um autêntico autódromo, acho que é pior do que a Segunda Circular”, queixa-se. As reclamações relacionadas com o barulho, em Lisboa, já são antigas. E apesar da legislação existente, quem sofre mais com o flagelo continua a sentir-se desprotegido. Sobretudo, no centro da cidade, onde proliferam as fontes de ruído, os moradores queixam-se de haver pouca fiscalização e falta de soluções para o problema.

Juntamente com outros moradores, Patrícia Santana redigiu, por isso, uma petição, que conta com 300 assinaturas. A principal queixa são os “valores elevadíssimos de ruído das motas e carros, que passam a mais de 140 quilómetros por hora e, no caso das motas, podem chegar aos 200 km/h”. A poluição sonora causada pela circulação daqueles veículos, diz Ricardo Pereira, 33 anos, também morador na zona, deverá afectar cerca de 500 famílias. Vive ali apenas há dois anos, o tempo suficiente para sentir a sua qualidade de vida prejudicada. “O barulho e os ‘picanços’ causados pelas motas são de uma violência extrema, é uma loucura todos os dias. Em casa, torna-se impossível falar e, no Verão, se abrirmos as janelas por causa do calor, nem conseguimos ouvir a televisão”, relata. Além de não descansarem, os moradores queixam-se de não ouvirem os filhos a chorar. “Tenho um aparelho para bebés, que acende quando detecta ruído, de outra forma não perceberia quando o meu filho chora”, lamenta. Patrícia Santana, mãe de duas crianças, com nove e dois anos, sente o mesmo. “Foi uma tortura os primeiros meses da minha filha mais nova, nunca a ouvia”, conta.

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O ruído da circulação de motos à noite na Avenida Marechal Costa Gomes tem tirado o sossego aos moradores

No mesmo prédio, Vítor Vieira, 33, que deixou o rés-do-chão para ir viver para o oitavo andar, está arrependido da mudança. “Ouve-se mais o ruído cá em cima. Trabalho numa das avenidas mais movimentadas de Lisboa, a Almirante Reis, e não é possível comparar a intensidade do som. Na rua onde vivo, o barulho é muito superior”, critica. Alguns habitantes da Rua Engenheiro Simões já terão feito investimentos na ordem dos 4 mil euros, cada um, para reforçar as janelas, mas os níveis do ruído mantiveram-se praticamente iguais. “Os prédios não foram construídos para anular o som. Há tanto barulho que já nem ouvimos uma ambulância. É o dia todo, mas à noite, quando estamos a descansar, sentimos que uma mota entra no nosso quarto”, conta Vítor Vieira, que já instalou duas janelas duplas. Os peticionários estiveram na reunião descentralizada da Câmara de Lisboa, a 5 de Dezembro, para pedirem a colocação de três lombas de alcatrão, um radar de velocidade, um semáforo e a insonorização das paredes do túnel.

 

O grupo de moradores ainda não conseguiu marcar um encontro com os seriços do município, solicitado por Ricardo Pereira nessa reunião camarária. Em resposta aos habitantes da Rua Engenheiro Simões, o vereador da Mobilidade, Miguel Gaspar, reconheceu, porém, o problema, e admitiu que a forma como a via foi construída impossibilita uma intervenção mais profunda da autarquia. “Está é uma das avenidas de acesso à terceira travessia do rio Tejo e foi, por isso, que foi desenhada com este perfil, quase de auto-estrada. Já não se faz cidade assim, é uma via demasiado agressiva para um bairro desta natureza. Os muros de betão desta via impedem-nos de ter outro tipo de intervenções mais humanizadas”, explicou.

 

Miguel Gaspar sugeriu a colocação de um semáforo e de um radar de velocidade, apoiando a solução proposta pelos moradores na petição, e a criação de “uma ligação pedonal a meio da via”, para aumentar a segurança. Rejeitou, porém, a sugestão da colocação de lombas. “Já pedi aos serviços camarários para estudarem a situação, mas não acredito muito na solução das lombas. Até acho que podem aumentar a insegurança para o peão, se o carro bater nelas”, disse o responsável pelo pelouro da Mobilidade. O autarca admitiu ainda que estas faixas são usadas “de forma abusiva por demasiadas pessoas”, mas não comentou o problema do ruído causado pelas motas, na Avenida Marechal Francisco da Costa Gomes.

 

A pouco mais de um quilómetro, na Avenida Guerra Junqueiro, Bruno Ferreira também não dorme bem desde que a Junta de Freguesia do Areeiro ligou a animação sonora de Natal. “A música está tão alta que, mesmo com janelas de vidros duplos fechadas, o ruído é incomodativo. Torna-se uma tortura trabalhar em casa”, reclama. O morador contactou a autarquia, que reconheceu que a música estava demasiado alta. Apesar das promessas em reduzir o som, garante, “não houve praticamente melhorias”. “As lojas só abrem às 10h00, mas o barulho começa logo às 9h00 e prolonga-se depois das 20h00, quando o comércio já fechou e já não há gente na rua, não se percebe”, lamenta.

 


 

As queixas ouvem-se um pouco por toda a cidade, principalmente no centro de Lisboa, onde o espaço público foi renovado, nos últimos anos, dando lugar a mais esplanadas e pontos de encontro e convívio. O projecto municipal Uma Praça em Cada Bairro tem sido um dos principais responsáveis pelas requalificações – a autarquia já fez obras em 17 sítios e pretende reabilitar mais 28 praças e ruas –, mas também o aumento do turismo impulsionou a reabilitação de vários prédios devolutos pela cidade, tendo alguns dado origem a restaurantes, cafés e outros sítios de convívio. A mudança no espaço público atraiu pessoas para outros lugares da cidade, alguns deles até então sem vida, criando-se novas fontes de poluição sonora. Nestas e noutras zonas, onde espaços de actividades nocturnas convivem com bairros residenciais, como no Bairro Alto e no Cais do Sodré, mas também em bairros afectados pelo barulho dos aviões, como são Campo de Ourique e Alvalade, repetem-se histórias de pessoas prejudicadas pelo excesso de ruído.

 

Luís Paisana, presidente da Associação de Moradores do Bairro Alto, diz que o número de queixas diminuiu, mas a descida não reflectirá a realidade. “Há menos reclamações porque já não há praticamente moradores. O problema, contudo, piorou, e a principal razão é o aumento do número de unidades de alojamento local. Estes apartamentos são mais pequenos e os turistas, principalmente jovens, preferem vir para a rua divertirem-se”, explica. O representante dos moradores critica ainda o preço “excessivamente barato” do álcool, que acaba por incentivar a um maior consumo. “Infelizmente, há cada vez mais estabelecimentos que vendem bebidas alcoólicas para a rua e a valores baixos. Como os bares fecham mais cedo, também há pessoas na rua mais cedo. Quem vem para cá festejar não tem consideração pelos residentes”, critica. Paisana elogia a implementação de dispositivos limitadores de som pela cidade, mas não deixa de reparar na falta de fiscalização. “A Câmara de Lisboa e as juntas de freguesia têm actuado pouco, há falta de recursos, mas também há falta de vontade política. A fiscalização é manifestamente insuficiente. O ruído na rua é um problema que continua a existir, e cada vez mais, por toda a cidade”, sublinha.

 

O número de exposições de ruído, em Lisboa, recebidas pelo Ministério do Ambiente e da Transição Energética (MATE), ao longo do ano de 2018, foi “residual, não chegando a uma dezena”, avança fonte do gabinete do MATE, em depoimento escrito a O Corvo. A versão não é, porém, corroborada pela associação ambientalista Zero, que diz receber várias queixas, essencialmente relacionadas com o ruído dos aviões à noite. A vice-presidente da Zero, Carla Graça, diz mesmo que “as segundas principais queixas a chegar ao Ministério do Ambiente, depois da baixa qualidade do ar dos centros urbanos, estão relacionadas com o ruído”, segundo dados apresentados pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), em 2015, e estas são “as mais difíceis de resolver”. “Quando as pessoas se queixam, as actividades nocturnas já estão licenciadas, tornando-se mais complicado actuar. Não existe, também, uma boa coordenação entre organizações como a APA e a Câmara Municipal de Lisboa (CML), empurram umas para as outras e as queixas continuam a circular. Já fizemos uma queixa, em março de 2016, à Comissão Europeia, sobre a falta de planos de acção do ruído e da falta de cumprimento da legislação”, diz.

 

 

A dirigente explica que o ruído relacionado com o tráfego automóvel só pode ser reduzido através de políticas “mais integradas”. “Há zonas onde já se reduziu a velocidade de circulação, o que acaba por ajudar, mas continuam a entrar muitos carros em Lisboa. A cidade está muito potenciada para o tráfego automóvel, com vias rápidas, o que intensifica o excesso de ruído. Ainda há muito a fazer, mas é preciso coragem política porque sabemos que não são as medidas mais populares”, considera. À associação ambientalista Zero não chegam praticamente denúncias quanto ao barrulho produzido pelo tráfego automóvel, mas poderá haver uma explicação. “As pessoas, muitas vezes, não têm noção, mas convivem, diariamente, com um problema grave para a saúde. Interiorizam o barulho e habituam-se a ele, há uma acomodação quotidiana, mas o ruído continua a fazer muito mal”, alerta.

 

De acordo com um estudo sobre poluição sonora feito pela Organização Mundial de Saúde (OMS), e divulgado no passado mês de Outubro, o barulho é um dos principais riscos ambientais para saúde física e mental e, por isso, a OMS pede a redução dos limites legais do ruído.  O relatório da OMS classifica, pela primeira vez, a emissão sonora relacionada com actividades de lazer, como clubes nocturnos, como “uma fonte de ruído potencialmente excessiva e prejudicial à saúde humana”. A exposição contínua ao som excessivo, ainda segundo o estudo, origina doenças cardiovasculares, podendo provocar enfartes, e doenças do foro psicológico, como depressões. O relatório da OMS inclui recomendações sobre limites ao ruído do tráfego de veículos automóveis, ferroviário e aéreo, e propõe, para o trânsito, um limite máximo de 53 decibéis, durante o dia, que cai para 45 decibéis, à noite.

 

O Plano de Acção do Ruído (PAR), aprovado pela Câmara de Lisboa, em 2014, identifica o tráfego rodoviário como a principal fonte de ruído da cidade. A criação deste documento visa melhorar a qualidade de vida dos habitantes, diminuindo o incómodo e os problemas de saúde associados ao ruído e, entre outros objectivos, a identificação de “zonas tranquilas promovendo estratégias de intervenção dirigidas à sua manutenção e extensão”. Toda a cidade está classificada, no Plano Director Municipal (PDM), como “zona mista” (habitação e serviços). Ao contrário de outros Planos de Acção do Ruído do país, o de Lisboa não classifica “zonas sensíveis” de exposição ao som excessivo, mas apenas “zonas mistas”. E poderá haver uma explicação. “Como Lisboa é uma cidade muito complexa, não foram designadas zonas sensíveis. Não é obrigatório defini-las, fica ao critério dos municípios, mas esta lacuna também mostra que o problema é transversal a toda a cidade”, conclui Carla Graça.

 

 

Segundo o Ministério do Ambiente, compete às autarquias locais promoverem medidas de prevenção e controlo da poluição sonora. “Apesar dos municípios não serem tutelados por este ministério, da parte do MATE e das entidades por si tuteladas, foi constatada a necessidade de serem estabelecidos critérios harmonizados para a emissão e implementação da Licença Especial de Ruído (LER), da competência daquelas”, avança o ministério em depoimento escrito. A Câmara Municipal de Lisboa, segundo o MATE, tem desempenhado um papel importante na diminuição do ruído nos centros urbanos, mas não são avançados mais dados. “Enviou contributos, que foram integrados no Guia LER e participou como oradora na sessão regional (de Lisboa e Vale do Tejo) de divulgação pública do respectivo Guia, neste ano de 2018, tendo apresentado as boas práticas que tem vindo a implementar nesta matéria”, diz, referindo-se ao município. O guia da Licença Especial de Ruído foi elaborado pela Agência Portuguesa do Ambiente e as Comissões de Coordenação Regional (CCDR), e está disponível desde 2017 nos sites destas entidades.

 

No final do ano de 2017, o Grupo de Trabalho sobre Governação Integrada na Área do Ruído (GovInt), uma rede colaborativa informal de instituições públicas e privadas, apresentou também um projecto-piloto, intitulado Ruído Ambiente. No relatório, o GovInt refere que, de acordo com as estimativas da Agência Europeia do Ambiente, pelo menos 20% da população da União Europeia reside em zonas com níveis sonoros “inaceitáveis” de ruído, em período nocturno, superiores a 45 decibéis. O ruído, avança o estudo, é “um dos maiores problemas ambientais da União Europeia”, provocando efeitos na saúde, a nível fisiológico e psicológico, como o sono, a capacidade de concentração e de comunicação.

 

Os níveis sonoros de ruído ambiente exterior, no Plano de Acção do Ruído da Câmara de Lisboa, estão limitados a 65 decibéis, durante o dia, e 55 decibéis para o período nocturno, entre as 23h e as 7h00. O Corvo perguntou à Câmara de Lisboa se há fiscalização do cumprimento destes valores e se tinha dados sobre as queixas relacionadas com o ruído, discriminados por freguesia, mas até ao momento da publicação deste artigo não obteve resposta. O Corvo questionou ainda a Agência Portuguesa do Ambiente, a Provedoria de Justiça e a Polícia Municipal de Lisboa se têm recebido reclamações por causa do excesso de barulho, mas estas entidades também não responderam. Tentou ainda falar com o grupo de acompanhamento do ruído da associação ambientalista Quercus, mas este não teve disponibilidade para prestar declarações em tempo útil.

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