Nos terminais fluviais de Terreiro do Paço e Barreiro, há centenas de utentes a desesperarem para entrar no barco

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Sofia Cristino

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Cidade de Lisboa

23 Maio, 2019

Várias ligações fluviais entre ambas as margens começaram a ser suprimidas em meados de Maio, muito por culpa de uma greve dos mestres da Soflusa. Esta semana, a situação agravou-se. Os barcos falham várias vezes e ininterruptamente, nas horas de maior afluxo, deixando centenas de utentes retidos nos terminais. E o cenário não deverá melhorar. A empresa diz que nesta quinta e sexta-feira (23 e 24 de Maio) vai suspender mais ligações. E que os terminais estarão encerrados, por motivos de segurança, durante os períodos de interrupção do serviço. Enquanto esperam pelos barcos, os utentes amontoam-se, alguns caem e outros, desesperados, saltam e partem os vidros das cancelas para entrarem no cais de embarque. “É a guerra do mais forte, estamos todos pressionados como sardinhas”, critica uma utente. Os mestres das embarcações já anunciaram que vão continuar a paralisação, que se prolonga desde 10 de Maio, para que sejam contratados novos profissionais.

Às 17h desta segunda-feira (20 de Maio), dezenas de pessoas empurravam-se para alcançarem as cancelas do cais de embarque do Terreiro do Paço e apanharem o barco em direcção ao Barreiro. Duas horas depois, já se contavam centenas de passageiros amontoados desordenadamente. Os ânimos exaltam-se quando não conseguem entrar no terminal. A Polícia Marítima, com contingente reforçado no início da semana para controlar a confusão instalada, quase que perde o controlo da situação provocada pela greve dos mestres às horas extraordinárias – devido à falta de profissionais -, desde o passado dia 10 de Maio. Debruçado sobre um aglomerado de pessoas, Carlos Matias, 42 anos, leva as mãos à cabeça. Há mais de uma semana que tem de sair uma hora mais cedo de casa para não chegar atrasado ao emprego. A precaução não tem sido, porém, suficiente. “Chego várias vezes atrasado e a chefia diz que o problema é meu, que não têm culpa da greve. Sou gestor de uma equipa e, se eu falho, o trabalho fica todo condicionado”, reclama.

Como Carlos, há milhares de pessoas a passar o mesmo martírio, todos os dias. Para Maria dos Anjos, 52 anos, o tormento começou logo de manhã. “Não consegui apanhar nem o primeiro, nem o segundo barco. Fui no terceiro, depois de uma hora à espera”, conta a empregada de limpeza. Deveria entrar no local de trabalho às 6h, em Lisboa, mas só conseguiu chegar 45 minutos depois. “Não nos pagam as horas que não fazemos, e não temos culpa nenhuma. Isto não se faz”, diz, revoltada. Georgina Gonçalves, 53 anos, à espera há meia-hora, também está desesperada. “Chegamos tarde ao trabalho e a casa, isto é uma vergonha. Quando for despedida, quem se responsabiliza? Qualquer dia, ninguém vive no Barreiro”, grita com os polícias marítimos. Leonor Martins, 66 anos, partilha a indignação. “Um dia destes, não dão emprego a quem mora na margem sul. Estamos a regredir, em vez de evoluir”, critica.

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O cancelamento de ligações tem sido uma constante

As queixas já são antigas. Há vários anos que os mestres da Soflusa reivindicam melhores condições de trabalho, mas nunca foram suspensos tantos barcos como na última semana. Desde o passado dia 10 de Maio, as reclamações dos passageiros subiram de tom, quando a empresa de transporte fluvial começou a suprimir ligações nas horas de maior afluência de utentes e de uma forma consecutiva, aumentando o período de espera e a aglomeração de pessoas. Num comunicado, no início desta semana, a Transtejo/Soflusa informava que as ligações no sentido Lisboa-Barreiro seriam suspensas nos dias 20 e 22 de Maio, às 00h30 e às 5h50, mas foram suprimidas em pelo menos mais seis horários, entre as 17h e as 21h, confirmou O Corvo no local.

 

É esta “imprevisibilidade e falta de transparência” da empresa, explica Cláudia Colasso, 37 anos, que também leva as pessoas a perderem a calma. “A informação que está na página na internet da Soflusa e a que está no painel dos horários é diferente. Supostamente, estariam assegurados barcos nas horas de ponta, mas não estão”, repara. A incoerência informativa já levou Sara Pato, 34 anos, a fazer uma reclamação por publicidade enganosa. No fim-de-semana passado, a utente já tinha feito uma outra queixa por atentado à segurança pública. “Partiram os vidros das portas que dão acesso aos barcos e as pessoas atropelaram-se umas às outras, correndo o risco de caírem ao rio”, recorda.

Enquanto os polícias tentam amenizar o clima de contestação, há quem salte cancelas, gerando ainda mais revolta ente os passageiros. “Isto é uma palhaçada e está a piorar todos os dias. Os trabalhadores da Soflusa estão a abusar. Se a empresa fosse privada, talvez não faltassem tanto, porque eram despedidos”, critica Maria Isabel, 68 anos, à espera há quase uma hora para entrar no barco. “Esticam a corda até dizer chega. Baixam o valor dos passes dos transportes públicos para nada, dão de um lado e tiram do outro”, atira outro passageiro que, assim que as cancelas abrem novamente, desaparece no meio da multidão. A porta do cais 2 foi aberta, enquanto o cais 1 ainda estava a receber passageiros. Várias pessoas acabaram por passar à frente de quem ali estava há mais tempo.


 

 

A forma como as autoridades actuam também tem sido muito criticada. “Isto é uma vergonha, a polícia não está a fazer nada. Isto já não vai só com conversas”, ameaça Cristina Rodrigues, 53 anos. Seguem-se vários insultos dirigidos aos quatro polícias, que tentam acalmar os mais agitados. Um dos polícias marítimos, que preferiu manter o anonimato, admite a O Corvo que “tem sido muito difícil controlar a confusão”.

 

Já dentro do cais de embarque, sentada num dos poucos lugares disponíveis, Eugénia Vicente, 76 anos, só se desloca a Lisboa esporadicamente, mas a irmã e o neto vêm todos os dias para a capital. “O meu neto está na faculdade e tem chegado atrasado e a minha irmã anda aflita das costas por causa dos empurrões. Isto não é um país civilizado”, reclama. De pé, três estudantes do ensino superior formam um círculo, enquanto há espaço, e antecipam o dia seguinte. Em segundos, o cais enche e deixam de se ver uns aos outros.

 

De manhã, no Barreiro, “é pior”, garante Rita Cravinho, 19 anos. “Há pessoas que entram pelas portas de saída e outras que partem as cancelas. Têm horários a cumprir e não podem estar sempre a chegar atrasadas ao trabalho”, relata. O colega, Tiago Lopes, 20, está mais indignado. “As pessoas querem um serviço de qualidade a baixos preços e, como se vê, não existe. Preferia pagar mais e ter um bom serviço. Não podem acrescentar barcos e não reforçar o pessoal, tem de haver uma continuidade”, sugere. O amigo, João Rocha, 21, conta que vários colegas do ensino universitário têm faltado às aulas. “É esta confusão todos os dias, nós temos aulas à tarde e vamos conseguindo vir com mais antecedência”, conta.

 

 

As portas abrem, o cais esvazia mas, em segundos, fica novamente cheio. Ouvem-se várias críticas à falha dos serviços de transporte, vêem-se pessoas impacientes, mas também conformadas e ansiosas por chegarem a casa. “Isto é um caos autêntico. Demorei quase três horas a chegar ao trabalho, mas normalmente demoro uma hora”, conta Ester Santos, 47 anos. Maria de Jesus, 68, segue cabisbaixa. “Ia a uma consulta a Lisboa, mas tive de voltar para trás porque já não me atenderam à hora que cheguei”, lamenta. Afastada da confusão, Rita Gomes, 41 anos, espera que o caos normalize, para entrar com a filha recém-nascida, que transporta ao colo. Moradora há poucos meses no Barreiro, nunca pensou que a mudança de cidade trouxesse tantos problemas. “Saí às 15h do trabalho, fui buscar a miúda e, agora, tenho de esperar, porque não me arrisco a ir para ali com ela. São 17h15 e não sei quanto mais tempo vou ter de ficar”, queixa-se. Na última semana, Rita já teve de faltar ao trabalho. “Depois de uma hora à espera, desisti. Têm de encontrar uma solução rapidamente”, apela.

 

Também há poucos meses a viver na Margem Sul, e mãe recentemente, Simona Tomarchio, 38 anos, chega todos os dias atrasada à creche para ir buscar o filho. “É uma creche privada e há alguma compreensão, mas tenho de pagar as horas extra que o bebé está lá. Isto afecta muito a vida pessoal e profissional das pessoas”, critica. Quando Simona decidiu ir viver para o Barreiro, por causa do aumento do preço da habitação em Lisboa, “não esperava que a capital ficasse tão longe”, ironiza. Mais do que chegar tarde, o que incomoda realmente a utente dos transportes fluviais é “a falta de civismo e educação das pessoas em momentos de grande stress”. “Há pouco tempo, empurraram o carrinho do meu filho e caí ao chão. É a guerra do mais forte, estamos todos pressionados como sardinhas. Parece que estamos num país de terceiro mundo e ninguém se responsabiliza”, critica. O cais de embarque do Terreiro do Paço, critica ainda, é “muito pequeno” e “as condições de espera são miseráveis”. “Estão a fazer obras no exterior da estação, podiam aproveitar e ampliar o interior”, sugere.

 

À noite, várias pessoas acabadas de chegar à estação do Terreiro do Paço invertem a marcha ao avistar a multidão, que se prolonga até às escadas do metropolitano. Madalena Fonseca, 54 anos, é uma das que está hesitante, mas ainda não desistiu de apanhar o barco. “Vou esperar que isto acalme e depois vou, mas a maioria das pessoas não pode esperar como eu. Tenho dado a vez a mães com crianças”, conta. A alternativa de transporte é a empresa ferroviária privada Fertagus, mas “não é a melhor solução”. “Agora não vou para lá porque encontro o mesmo cenário, ou pior”, antecipa.

 

 

A ligação fluvial que liga as duas margens do rio Tejo tem sofrido várias supressões no serviço, tendo duas dezenas de pessoas chegado a dormir no terminal do Terreiro do Paço por falta de barcos à noite (passados dias 10 e 11 de Maio). Os passageiros têm enviado várias reclamações à empresa de transportes, mas as respostas temem em tardar e, quando chegam, não trazem boas novidades. Numa resposta a uma utente, a Soflusa “lamenta a insatisfação reportada, reconhecendo que os incumprimentos de horários têm sido mais frequentes do que seria desejável”, admite. “Mantemo-nos empenhados em resolver, com a celeridade possível, os constrangimentos que, neste caso, são de carácter laboral e que têm motivado os incumprimentos”, lê-se no email.

 

O Corvo também tentou obter esclarecimentos da Soflusa mas, até ao momento da publicação deste artigo, não obteve respostas. Num comunicado divulgado pela empresa esta terça-feira (21 de Maio), avança-se que, esta quinta-feira (23 de Maio), o serviço de transporte será realizado apenas entre as 00h05 e a 1h30, às 5h05, entre as 10 e as 18 horas e, depois, das 21h55 às 23h30, no caso da ligação entre o Barreiro e o Terreiro do Paço. No sentido contrário, haverá serviços mínimos entre a meia-noite e as duas da manhã, às 5h30, entre as 10 e as 18 horas e, ainda, das 21h55 às 23h30. Já na sexta-feira (24 de Maio) muda apenas um dos horários na ligação entre o Barreiro e Lisboa: o que começa às 10 termina às 17h45. Por motivos de segurança, lê-se ainda na nota, “durante os períodos de interrupção do serviço, os terminais fluviais estão encerrados”.

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