Mouras e Tesouros Encantados
As mouras encantadas, são um dos temas mais comuns das lendas e superstições populares da Europa Ocidental. São classificadas como divindades maléficas, génios femininos das águas, guardiãs de tesouros encantados escondidos no centro da Terra.
Só na mitologia portuguesa desapareceu essa feição maléfica que estas entidades revestem noutras mitologias europeias. Contudo, podemos ver um derradeiro reflexo nalgumas tradições, ainda hoje em vigor no nosso país, executadas junto às fontes, à noite, sobretudo na noite de S. João.
O que é certo é que, de todas as criações do maravilhoso popular, esta é, indubitavelmente, uma das mais poéticas e melhor exemplificadoras da crença geral europeia.
Mas, porquê a designação de “mouras encantadas”? Logicamente, esta designação remonta à época do domínio árabe (mouro), na Europa Ocidental. Em Portugal, o domínio árabe inicia-se no ano de 711 e só em 1249 se desvanece por completo ( em 1249, D. Afonso III toma Faro, Albufeira, Porches e Silves, marcando o fim da reconquista portuguesa; segue-se uma guerra entre Portugal e Castela pela posse do Algarve, que termina em 1253, com o Tratado de Paz). Fazendo as contas, são mais de 5 séculos de influência da cultura árabe.
Ora, sendo Portugal um país de tradição católica cristã, é normal que as “mouras” – de religião islâmica – que ficaram no nosso país fossem “encantadas” para não poderem exercer nenhuma influência.
No nosso país, é sobretudo como génios femininos das águas que as mouras encantadas são conhecidas, característica esta muito presente nas superstições que a elas se referem. As mouras vivem em ribeiros, regatos, poços e, sobretudo, em fontes. Pode dizer-se que quase não há fonte no país associada a uma lenda de moura encantada, ora em forma de cobra/serpente que pede aos viajantes que a desencantem; ora subtil donzela que promete infindáveis riquezas a quem lhe quebrar o encanto.
Dada esta enorme quantidade de lendas e superstições acerca das mouras, seria impossível apresentá-las todas. As lendas que se seguem são apenas uma demonstração.
Num sítio chamado Fornos, em Algoso, há uma fonte onde vivia uma moura encantada que, certo dia, apareceu a uma boieira prometendo-lhe imensas riquezas, se a desencantasse. Para tal, bastava que não se assustasse quando ela lhe aparecesse à hora aprazada em figura de touro bravo, em jeito de querer escorná-la, ou de serpente a trepar por ela acima para a beijar.
A rapariga prometeu mas, quando da investida da serpente, fugiu. A moura desapareceu, lastimando-se: -“Ai que me dobraste o encanto!”
É sempre assim, as mouras lá estão, e os tesouros também, mas ninguém se atreve a desencantá-los. Os que o prometem e falham, dobram o encanto às solitárias mouras encantadas.
Também noutra fonte do sítio da Terronha, há outro encanto sob a forma de cordão de ouro. Já uma vez foi visto por uma mulher que começou a dobar, a dobar nele e, quando já não podia mais, entendendo que já tinha riqueza suficiente para si, filhos, netos e bisnetos, cortou o cordão. Imediatamente, tudo desapareceu e a mulher ficou sem nada.
Algoso é uma pequena aldeia perdida nas serranias transmontanas. Diz uma lenda, que ainda subsiste, que no tempo dos Mouros existia nos arredores um bruxo famoso, conhecedor de mezinhas milagrosas e sabedor do passado e do futuro. Vivia num casebre um pouco afastado da povoação, mas nem a pobreza da sua casa, nem a distância, obstavam a que ali acorressem quantos acreditavam nas suas capacidades mágicas ou videntes.
Na verdade, todos ali acudiam em busca de cura para os seus males, pedindo filtros de amor ou indagando sobre o que lhes reservaria o futuro. Em certos dias era uma autêntica romaria. E com tudo isto o bruxo criou fama e proveito de homem rico, apesar de continuar a viver no pobre casebre tentando fazer-se passar por miserável. Entretanto, os cristãos iam avançando na reconquista de território ainda sobre a dependência dos Mouros e estavam a aproximar-se rapidamente de Algoso. Sabendo disto o bruxo, calculou que a ocupação cristã não viesse a ser muito demorada e decidiu esconder os seus tesouros, para recuperá-los mais tarde, quando pudesse voltar ao seu oficio.
Assim pensando, escolheu o que podia carregar consigo, e o restante meteu-o num cofre de marfim chapeado a cobre. Feito isto, e como precisava de encontrar um bom esconderijo para a sua fortuna, partiu com o cofre debaixo do braço em demanda do melhor local. Depois de muito procurar, achou que o melhor sitio era debaixo da fonte de S. João, debaixo das raízes de um enorme e belo chorão que derramava a sua sombra nas águas. Pegou numa enxada e cavou um buraco apropriado ao tamanho do cofre. Meteu-o lá dentro, tapou-o com terra e disfarçou a obra com folhagem e gravetos. Terminado o trabalho, levantou-se e olhou em volta. Espantado, viu uma mourinha que, descuidada, descia uma vereda da serra cantando uma velha canção. Convencido que a moura o vira esconder o cofre e estava agora a disfarçando o caso, o bruxo encaminhou-se para ela, olhou-a com uma estranha fixidez, fez uns sinais misteriosos e, recitando certa oração antiga, lançou sobre a menina um encantamento, de tal modo que ela desapareceu no mesmo instante. Casquinhando, esfregou as mãos, pegou nos seus haveres e desandou rapidamente para a floresta, donde nunca mais voltou. A lenda da moura de Algoso foi passando de geração em geração. A fonte de S. João de resto, continuava ali, lembrando a todos a desdita da mourinha encantada pelo bruxo e desafiando a coragem de quem sonhasse desencantá-la. Uma noite, muito próxima da de S. João, um rapaz de Algoso que se apaixonara pela história sonhou que via a moura na fonte. Mal acordou, decidiu tentar ver na madrugada de S. João se a lenda era verdadeira. Além disso, como corria se alguém visse a moura nas suas horas felizes lhe podia fazer três pedidos que seriam atendidos, o rapaz achou que, apesar do medo, era vantajoso fazer aquela tentativa. Na véspera de S. João, encaminhou-se para a fonte ainda antes de anoitecer por completo. Procurou um local para se esconder, de onde visse sem ser visto, e esperou pela meia noite sem fazer ruído algum. O velho chorão da fonte, já centenário, continuava lançando sobre a água os seus ramos lacrimejantes.
Do outro lado, havia agora um belíssimo roseiral, donde provinha um perfume intenso quando todas as rosas abriam. Chegou a meia noite. De repente o rapaz ouviu uma restolhada vinda das bandas do roseiral. Era uma enorme serpente que, rastejando, se dirigia para a fonte. Aí chegada, mergulhou três vezes. Qual não foi o espanto do moço quando viu aparecer sobre as águas uma menina: a moura da fonte e... mais bela do que tradição contava. A moura saltou com leveza da rocha para o solo e, sentando-se na borda da fonte, começou a cantar uma suave canção que o marulhar da água acompanhava, enquanto ela ia passando um pente pelos seus cabelos loiros. Subitamente, uma corça apareceu vinda da floresta e, sem mostrar qualquer receio, aproximou-se da moura, que a afagou com ternura. A corça, num gesto de agradecimento, lambeu-lhe as babuchas de damasco azul. Era realmente um espectáculo de beleza que o rapaz jamais esperava encontrar, E, acocorado no seu canto, esqueceu os três pedidos que queria fazer, esqueceu tudo, esqueceu-se até de si mesmo, até que, bruscamente, a moura parou de se pentear, debruçou-se no tanque e desatou num pranto irreprimível. Chorava, talvez, a dor da sua solidão sem fim. Condoído, o rapaz fez um movimento para a consolar, esquecido do que não fosse aquela ânsia de ternura que dele se apoderara. Ao erguer-se, porém, fez estalar sob o corpo os ramos da sebe em que se escondera. A corça embrenhou-se rapidamente no mato e a moura desapareceu subitamente, evolando-se numa névoa sobre a águas da fonte de S. João de Algoso.
Retirados do livro "Lendas Portuguesas" autor Fernando Frazão